segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Aquiles e Jesus - Parte II

Por Acauan Guajajara

Publicado originalmente em 12/11/2006 às 14:21

Enquanto na narrativa mítica de Aquiles o mais poderoso dos homens está inevitavelmente destinado a ser vencido pela morte, na de Jesus de Nazaré a morte é vencida por um Deus que, em forma humana, renunciou a todo poder.

Aquiles encontra uma morte indesejada que lhe priva do triunfo final de sua maior luta, Tróia.
Jesus de Nazaré se submete voluntariamente aos seus inimigos para sofrer a morte em meio à tortura e humilhação.

A intersecção da queda do herói, da glória para o vazio, com a ascensão do homem-Deus, da imolação para a redenção, se dá no momento da morte, quando ambos se igualam em sua humanidade, o que lhes resta diante daquilo que os desprovê de tudo o mais.

Na iminência da morte, tanto o guerreiro indestrutível quanto o Cordeiro de Deus se sentem abandonados.
O primeiro por sua invulnerabilidade e o segundo pela presença divina.

É neste momento de semelhança entre as duas mortes míticas que se definem suas diferenças complementares.

Quando Jesus de Nazaré morre, rasga-se o véu do Templo, expressão usada em Mateus para simbolizar que o mistério inacessível foi revelado.

Tal mistério era a causa da frustração de Aquiles que, como mortal, não podia entender o Hades, que tentava interpretar a partir de sua própria realidade, uma realidade que já não lhe existia mais.

Só os deuses, de sua condição transcendente, eram capazes de compreender a mortalidade, mas como deuses eram incapazes de revelar um mistério que para eles não existia.

O véu do Templo se rasga quando a morte é penetrada por um ser que condensa em si a finitude humana e a transcendência divina.
Este feito não poderia ser realizado por um herói como Aquiles e nem mesmo por um semi-deus como Heracles.
O véu do templo só poderia ser rasgado por quem fosse ao mesmo tempo totalmente humano e totalmente divino, uma concepção inexistente no mito grego que é fundamental no mito cristão.

Só que o mito cristão não se encerra quando o véu do Templo é rasgado.
Ele se projeta para o futuro profético do segundo advento, quando Jesus retornará em glória e majestade.

Como um herói triunfante.

Como Aquiles.

Aquiles e Jesus - Parte I

Por Acauan Guajajara

Publicado originalmente em 11 de julho de 2006, às 23:12

Todas as civilizações e culturas se ergueram sobre um conjunto de mitos fundadores que estabeleceram as percepções simbólicas da realidade, a partir das quais grupamentos de comunidades humanas desenvolveram identidade, valores e objetivos comuns.

Os significados míticos associados à morte, extraídos daquelas percepções, buscavam um sentido para a finitude humana que, paradoxalmente, só era encontrado na negação desta finitude.

Neste contexto, as duas narrativas míticas que lançaram as raízes da civilização ocidental, a Ilíada de Homero e a Bíblia judaico-cristã, apresentam visões opostas e complementares sobre os significados da morte e, por extensão, sobre os significados da vida humana, a partir da morte de dois de seus respectivos protagonistas, Aquiles e Jesus de Nazaré.

Aquiles foi o herói fundamental.
O guerreiro indestrutível, de imaculado valor pessoal, inspiração e modelo para todo um povo aos olhos do qual parecia predestinado ao eterno triunfo.

Com tudo isto, o filho de Peleu era mortal, atributo que definia sua verdadeira, e derradeira, predestinação.
Aquiles tombou pelo arco de Paris, pela fúria de Apolo e por sua única fraqueza, o calcanhar não imerso nas águas do rio Estige.

A morte de Aquiles é puramente trágica.
É o fim dos triunfos.
O maior dos guerreiros se vê privado da morte gloriosa em combate ao ser abatido a distância pelo inimigo de tocaia.

O significado mítico da morte de Aquiles é resumido pelo próprio, que, evocado por Ulisses, lamenta sua estada no Hades.
Quando o rei de Ítaca declara ao companheiro que ele merece ser aclamado príncipe entre os que tombaram, Aquiles retruca que preferia ser escravo entre os vivos que nobre entre os mortos.

O sofrimento de Aquiles não provém de tormentos externos, como no inferno cristão, mas da interrupção brusca e irrevogável de tudo que fazia dele o que era.
Aquiles, na morte, contempla para sempre seu próprio esvaziamento como ser, enfrentando a dualidade dramática de ser testemunha de seu próprio inexistir, uma morte sem o alívio anestésico da inconsciência.

Sua morte traduz a certeza trágica de que todas as vitórias humanas apenas anunciam a derrota final, que anulará todo triunfo que a precedeu.

Só que esta certeza não é absoluta.
Coube a Ulisses confrontá-la. Primeiro ao restaurar o ânimo de Aquiles relatando os grandes feitos de seu filho Neoptólemo e, em outro momento da narrativa, ao recusar a oferta de imortalidade e juventude eterna feita pela ninfa Calipso, em troca da permanência dele junto a ela.
Ulisses escolhe voltar para seu reino, para sua casa e para sua esposa.

Se o vazio dos mortos pode ser preenchido pelas notícias do sucesso de um filho e se o que preenche nossas vidas finitas – amor, família, lar - vale mais para nós que uma existência imortal, a certeza trágica traduzida na morte de Aquiles não é tão certa assim.

É no hiato desta dúvida que as mortes de Aquiles e de Jesus de Nazaré se aproximam.

domingo, 11 de setembro de 2011

O meu 11 de setembro de 2001

Por Acauan Guajajara
Publicado originalmente em 11 de setembro de 2011

A geração anterior à minha demonstrava o quanto determinados eventos marcam a memória com a pergunta "Onde você estava quando soube que John Kennedy foi assassinado"?
Era sabido que o perguntado se lembraria dos detalhes do momento.

Na manhã de 11 de setembro de 2001 eu estava em meu trabalho.
Um amigo comentou após o protocolar bom dia que um avião havia batido no World Trade Center.
Lembrei-me de imediato do acidente no qual uma aeronave militar chocou-se com o Empire States em 1945 e pensei que o improvável se repetira, algo como um raio caindo duas vezes no mesmo lugar.

Como não estavamos em 1945, acessei na Internet o "Últimas Notícias do UOL" para saber mais detalhes do que imaginava ser apenas um desastre aéreo urbano.
Em poucos segundos uma avalanche de manchetes deixava claro que no intervalo entre a hora que acordei e a presente o mundo havia sido virado de cabeça para baixo.

As informações instatâneas desta nova era fluíam tão rápido que era impossível distinguir os fatos dos boatos. Textos rápidos falavam sobre bombas no capitólio, evacuação da Casa Branca, possibilidade de os Estados Unidos declararem guerra (sem especificar contra quem) e todo tipo de especulação.

Aos poucos ficava claro que testemunhavamos um momento histórico. Fosse o que fosse que estivesse acontecendo, era coisa séria, muito séria.

Logo em seguida à primeira leitura das notícias na web minha esposa me ligou chocada para contar o que viu nas edições extraordinárias dos telejornais, ainda tão repletas de especulações e espanto quanto suas versões informatizadas.

A rotina de trabalho foi completamente abandonada.
A cada segundo o Últimas Notícias do UOL montava o cenário assombroso envolvendo as duas torres, o Pentágono e um terceiro avião sequestrado. Especulava-se que uma dezena de aviões ou mais poderia estar seguindo para alvos diversos.
Entre tanta informação incerta, despertou dúvida aquela que dizia que todo os aviões em espaço aéreo americano receberam ordem para aterrisar e todos os vôos destinados aos Estados Unidos deveriam ser desviados para aeroportos próximos.

Minha esposa ligou novamente.
A voz antecipava a gravidade do momento.
- A torre está desabando! Está desabando!

Deixei minha sala e fui para o setor de treinamento onde havia um aparelho de TV (em 2001 a transmissão de imagens via web era lenta demais).

Ao ligar na CNN o título no rodapé da tela resumia o que nunca esqueceríamos: America under attack.

Ver a primeira torre se desintegrando em uma nuvem de poeira (ninguém vai lembrar, mas isto remete a um episódio de O Tunel do Tempo, que tinha tudo a ver) deixava claro que fosse quem fosse que tivesse feito aquilo, seu objetivo havia sido atingido.

Ver as torres caindo em tempo real era a mais completa tradução do terror.
Terror reforçado pelas especulações dos jornalistas, que citaram que naquela hora de um dia útil poderia haver até quarenta mil pessoas nas torres.

Ser testemunha ocular da morte de quarenta mil seres humanos não é sensação que se assimile prontamente.

Minha esposa ligou mais uma vez.
Entre expressões mútuas de espanto, resumi tudo em uma frase:
"Nunca pensei que nossa geração veria o seu Pearl Harbour".

Por ironia do destino, na tarde de 11 de setembro de 2001 me dirigi ao aeroporto de Congonhas. Embarcaria para Porto Alegre onde tinha uma palestra programada para o dia seguinte.

Na sala de embarque, as TV's exibem uma repetição sem fim das imagens de aviões explodindo. Nada animador para quem vai embarcar em um.
Sigo para pista e encaro o fokker 100 da TAM. Quem conhece o histórico deste modelo entende o quanto o receio esperado em dias normais podia ser amplificado naquele.
E a cereja do sunday. Seguindo o ritual da TAM, a tripulação que recebe os passageiros tem como comandante um piloto nissei (ou sansei, ou nãosei).
No dia dos eventos mais chocantes envolvendo aviões eu estava entrando em um avião suspeito pilotado por um profissional certamente confiável, mas que naquele momento em especial eu lia "kamikaze" escrito na testa dele.

Acordei em 12 de setembro de 2001 em um hotel de Porto Alegre.
Liguei a TV e sintonizei no canal de notícias.
Assisto ao vivo a entrevista de Rudolph Giuliani, então prefeito de Nova York sobre os ataques.
Perguntam a Rudy se o WTC seria reconstruído.
Espero uma resposta evasiva, do tipo "é muito cedo para..."

Giuliani não hesitou um segundo e respondeu: "É claro que iremos reconstruir. Tudo que os terroristas conseguirão é que saiamos disto ainda mais fortes".

Dez anos depois, enquanto escrevo isto, o novo World Trade Center se ergue mais de oitenta andares acima do Marco Zero, onde um magnífico memorial registra o nome dos que morreram nos ataques e os ideais dos que não deixarão que sejam esquecidos.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Follow me

Por Acauan Guajajara

Publicado originalmente em 11/09/2006 às 16:02





A tragédia humana advinda de cada inocente morto no Onze de Setembro não é, em si, pior que qualquer outro caso de inocentes mortos injusta e prematuramente que nos é noticiado todos os dias.

Já os significados do evento vão muito além da somatória das tragédias individuais que produziu, o que pode ser constatado pelo modo como, no mundo inteiro, pessoas distantes em todos os sentidos daquelas que morreram ignoraram esta distância para assumir seu choque e consternação diante do ocorrido.

Atribuir tal efeito às coberturas midiáticas do atentado é simplismo.
Catástrofes naturais como o tsunami de 2004 receberam cobertura tão ampla quanto os atentados terroristas e vitimaram dezenas de vezes mais pessoas, sem alcançar o nível de impacto emocional produzido pela queda das torres.

Também podem passar ao largo da análise dos significados mais profundos da questão as motivações político-ideológico-religiosas dos atentados e da reação a eles.
A recente invasão de Israel ao Líbano mexeu no mesmo vespeiro de polêmicas, produziu mais de mil mortes e foi tão noticiado quanto os atentados, sem que a aventura militar sequer chegasse perto de marcar tanto e tão profundamente as memórias quanto os aviões explodindo nas grandes torres.

O grande e verdadeiro significado do Onze de Setembro reside em seus conteúdos espirituais, humanos e universais, que unem e igualam todos nós, justamente por situarem-se acima e além das picuinhas de opinião.

Erram tremendamente os que tentam entender tais conteúdos tomando como protagonistas daquele dia o presidente dos Estados Unidos da América, George W. Bush e o líder terrorista Osama Bin Laden.
Dois outros personagens incorporaram melhor a magnitude daquele acontecimento por terem representado em um mesmo dia os extremos do espírito humano diante do sacrifício.

Mohamed Atta e William Feehan.

A lembrança do primeiro nome serve apenas como alerta para todos nós sobre o mal inerente ao fanatismo.
O sacrifício de Atta foi a apoteose de anos de dedicação, aprendizado e planejamento visando concretizar a morte de milhares de inocentes.

Já o nome de William Feehan, chefe dos bombeiros da cidade de New York, serve de inspiração a todos que acreditam na grandeza humana.
Seu supremo sacrifício foi o apogeu de uma carreira construída sobre vidas salvas, quando sua liderança, atitude e coragem trouxeram a esperança a pessoas que já a haviam perdido.

Seu exemplo torna compreensível porque tantos homens entraram nas torres abaladas para salvar vidas de estranhos, sabendo dos terríveis riscos.
Bastava naquele momento que se recusassem a entrar e teriam sobrevivido.

Mas eles entraram.
E morreram.

Porque havia pessoas precisando deles.
Porque era seu dever.
Porque eram honrados.

Porque eram bravos.

E porque seguiam William Feehan, quando este dizia simplesmente "follow me".

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

A Ética Espírita – Parte 1

Por Acauan Guajajara

Publicado originalmente em 07/03/2008 às 22:49


A ética espírita é uma hipotética dinâmica cósmica na qual a providência divina, o livre arbítrio espiritual e o tempo interagem na cadeia de eventos da existência de modo a garantir que todos os espíritos criados igualmente simples e ignorantes evoluam até se tornar, todos, espíritos igualmente puros e perfeitos, quando desfrutarão de uma felicidade suprema e eterna.

Nesta dinâmica cósmica, a providência divina estabelece e sustenta a ordem metafísica, as regras do jogo, como a lei do karma – que determina que os espíritos devam passar por várias encarnações para expiar antigos erros e aprender - e a lei do progresso, segundo a qual os espíritos podem evoluir ou estacionar moralmente, mas nunca regredir.

Seguindo seu livre arbítrio, cada espírito submete-se ou não a esta ordem metafísica, às regras do jogo. Os que se submetem progridem mais rápido que os que não e alcançam em menor tempo a felicidade da perfeição.

O propósito final da dinâmica cósmica é dar à existência um sentido de justiça universal, erigida da igualdade e do mérito, conforme todos os espíritos devam se submeter à mesma ordem metafísica para progredir e alcançar a felicidade da perfeição.

Esta justiça universal resolveria questões em aberto de outras filosofias e teologias morais:

O problema do Mal – por que um Deus bom permite o mal;
A conciliação entre soberania divina e livre arbítrio humano;
As injustiças da vida – por que algumas pessoas nascem condenadas a uma vida de miséria, doença e sofrimento, enquanto outras levam uma existência tranqüila e prazerosa, por que coisas ruins acontecem a pessoas boas, por que pessoas ruins se dão bem no final etc.

Segundo o espiritismo:

Deus permite o mal como decorrência da ignorância primitiva na qual os espíritos foram criados, como pré-requisito para o exercício do livre arbítrio e para estabelecer os méritos individuais dos espíritos que, de livre arbítrio, optam pelo bem.

A soberania divina e o livre arbítrio humano se conciliariam pela vigência da dinâmica cósmica que faz com que o resultado final das decisões individuais tomadas de livre arbítrio seja o encaminhamento de todos os espíritos para a perfeição e felicidade, no tempo justo a cada um.

As injustiças da vida seriam provações necessárias ao aprendizado e evolução do espírito e expiação de faltas passadas. Dentro da dinâmica cósmica as tais deixariam de ser injustas, pois a seqüência de reencarnações tanto pode estabelecer uma igualdade geral entre as existências individuais - quem foi pobre, doente ou sofredor em uma vida pode ser rico, saudável e afortunado em outra e vice-versa, quanto os que porventura passam por mais experiências ruins do que boas poderiam aprender e evoluir mais rápido espiritualmente, reduzindo o tempo requerido para alcançar a felicidade da perfeição.

Muitos adeptos do espiritismo o são por tomar como satisfatórias as proposições acima, vendo nelas explicações melhores para estas questões do que as dadas por outras filosofias ou teologias morais.

Nem sempre esta adesão e satisfação passam pelo crivo de uma análise mais metódica da coerência intrínseca e extrínseca das proposições. No mais das vezes pesa mais o alívio emocional do acreditar ter encontrado as respostas pelas quais se ansiava, do que a certeza racional de tê-las provadas verdadeiras.

Uma análise inicial da dinâmica cósmica que fundamenta a ética espírita demonstra contradições e lacunas, no mínimo tantas e tão sérias quanto às das outras filosofias e teologias morais no que se refere às questões propostas do problema do mal, livre arbítrio e injustiças da vida.

Um primeiro problema é quando o espiritismo associa o mal à ignorância.
Admitida esta associação direta e exclusiva, o espírito ao longo do tempo se afastaria do mal na medida em que aprende e avança na dinâmica cósmica, até livrar-se dele por completo, por conta de ter aprendido o suficiente para tal.

Ora, a ignorância por si só não é boa ou má. É moralmente neutra.

Escolhas morais só se definem quando há consciência delas.
Nas teologias judaica e cristã esta consciência moral é simbolizada pelo fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, antes da tomada do qual o pecado não poderia existir.

O Livro dos Espíritos diz que os espíritos foram criados com igual aptidão, tanto para o bem, quanto para o mal e que os maus o são por vontade própria.

Ocorre que se os espíritos recém criados são plenamente ignorantes das questões morais e dotados de igual aptidão para o bem ou para o mal, diante de uma decisão moral se encontrariam inevitavelmente em um impasse imobilizador.

Não poderiam julgar questões morais a partir do seu próprio conhecimento, limitados que seriam pela tabula rasa de si próprios, e não poderiam reagir intuitiva ou instintivamente, dada a equivalência de aptidões para o bem ou para o mal.

Um espírito com estas características, totalmente ignorante e moralmente neutro seria incapaz de tomar decisões morais.

O Livro dos Espíritos diz que outros espíritos ignorantes são capazes de influenciar os de seu nível ou abaixo para o mal.

Além do já exposto que ignorância não é sinônimo de maldade, fica a questão de quem influenciaria estes espíritos ignorantes que influenciariam os outros.
Não há como resolver o problema sem uma regressão infinita, incompatível com a dinâmica cósmica que parte do princípio que os espíritos são criados.

Outra contradição pode ser identificada no conceito de hierarquia moral que os espíritos estabeleceriam entre si conforme progridem na dinâmica cósmica.

O Livro dos Espíritos descreve esta hierarquia em três ordens e dez classes, com ressalvas quanto a esta divisão não ser absoluta.
Na base estariam os espíritos impuros da décima classe, com o status moral análogo ao dos demônios, e no topo os espíritos puros e perfeitos de primeira ordem e primeira classe.

A contradição está em que se a lei do progresso impede os espíritos de regredir, temos que nenhum espírito poderia apresentar um status moral inferior àquele em que foi criado - simples, ignorante e igualmente apto ao bem ou ao mal.

Porém a descrição feita dos espíritos de décima ordem fala de seres inclinados ao mal, aos vícios, às paixões degradantes, que fazem o mal por prazer e ódio ao bem.
É claro que tais seres estão moralmente muito abaixo do que se poderia chamar de espíritos simples e ignorantes, igualmente aptos para o bem ou para o mal.

Assim, ou alguns espíritos recém criados que deveriam ser moralmente neutros em sua ignorância primitiva degeneram para uma condição moral análoga à demoníaca, violando a lei do progresso, ou os espíritos humanos são criados na condição moral análoga à demoníaca, violando o princípio de ser na origem simples e ignorantes.

Além disto, se todos os espíritos são criados iguais e se os de décima ordem são inclinados ao mal, de onde vem esta inclinação?
Não se pode dizer que do livre arbítrio, pois se todos os espíritos são criados igualmente ignorantes e com iguais aptidões morais seria de se esperar que seu uso do livre arbítrio apresentasse as mesmas inclinações.
A explicação da influência de outros espíritos inferiores também pode ser descartada como exposto acima, dado requerer uma regressão infinita para se sustentar.

Qual seria então o fator diferenciador que levaria alguns espíritos originalmente ignorantes e aptos tanto para o bem quanto para o mal a inclinar seu livre arbítrio para o mal, com a intensidade perversa relatada na descrição dos espíritos de décima classe, enquanto outros criados na mesma condição não o fazem.

Uma explicação possível seria que estes espíritos possuíssem vocação inata para o mal, teriam sido criados com ela, o que contraria o princípio da igualdade original na criação e derruba um dos pilares da justiça universal da dinâmica cósmica espírita que é justamente a igualdade geral das existências individuais, uma vez que alguns espíritos já seriam na origem melhores do que outros.

Outra é que esta queda para o mal é feita de modo completamente aleatório, com o espírito optando por este caminho a partir de decisões tomadas na cegueira de sua ignorância moral primitiva, o que implicaria que o acaso interfere na evolução dos espíritos, o que também contraria a dinâmica cósmica, como definida.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Sobre a obrigatoriedade da crença

Por Acauan Guajajara

Publicado originalmente em 2/2/2005 17:36:51

A obrigatoriedade da crença é um dos pilares do Cristianismo e do Islamismo. Mais exigente no primeiro, devido ao dogma do único caminho e única verdade atribuídos a Jesus de Nazaré. Já a doutrina de Mohamed admite o Judaísmo e o Cristianismo como religiões verdadeiras, embora obsoletas em relação ao Islã. Posteriormente teólogos islâmicos admitiram o Zoroastrismo na lista.
Mas, tanto para Cristãos quanto para Muçulmanos, não acreditar no que suas tradições dizem ser verdades sagradas implica numa passagem só de ida e sem escalas para o inferno.

Isto não ocorre no Judaísmo por exemplo, onde a relação com Deus era uma conseqüência direta do sangue, conforme o pacto estabelecido entre Iavé e Israel através de Abraão. A crença judaica era tão intrínseca à nação que a professava, que sua própria identidade se desvanecia se apartada de sua herança teológica.

Desconheço a existência de outras religiões primitivas que condenassem explícita e prioritariamente a descrença.
O que era comum nestas religiões, depois de institucionalizadas nas sociedades que as adotaram, era condenar e punir a desobediência aos preceitos, as manifestações exteriores de desrespeito à autoridade da religião.

Isto faz sentido.
Desrespeitar preceitos é uma ação objetiva e pode ser aferida objetivamente.

Por que cargas d´água um legislador religioso iria acusar alguém de descrença se não é possível aferir no que realmente alguém acredita?
Além do mais, para as religiões pré-Cristãs, aparentemente a crença pessoal era irrelevante desde que não se demonstrasse na forma de rebeldia explícita contra a ordem religiosa estabelecida.

O Cristianismo e posteriormente o Islã invertem esta perspectiva.
A crença, mesmo que não aferível objetivamente, passa a ser a obrigação primeira do fiel, sem o que qualquer cumprimento dos preceitos religiosos estabelecidos, por mais zeloso que seja, é tido como absolutamente inócuo.

Mais ainda.
Ambas as religiões definem que a descrença nos fundamentos de sua doutrina, por si só, justifica a condenação ao sofrimento eterno no inferno. Os atos ou o valor pessoal deixavam de ter qualquer importância ou significado sem a crença obrigatória.
A descrença elevada à condição de crime passível de pena capital, no sentido teológico e, em várias épocas e lugares, também no sentido secular.

A Reforma Protestante ampliou a abrangência desta premissa.
No cânone Católico Romano, se a descrença levava necessariamente à danação eterna, a crença, por si só, não levava a lugar algum se não fosse acompanhada das outras virtudes teologais – esperança e caridade, além da obediência às regras de vida determinadas pela Igreja Romana.

Com Lutero e Calvino ocorre uma inversão de posições relativas às religiões pré-cristãs. Nestas, a crença era subjetiva demais para ser relevante por si só quando comparada à obediência aos preceitos e ritos. A Reforma Protestante executa uma troca de lugares, na qual a obediência aos preceitos e ritos passa a ser irrelevante e a crença, e apenas a crença, passa a ser considerada como o instrumento de obtenção da graça divina. A tal da salvação pela Fé e não pelas obras.

O Fundamentalismo Cristão tomará esta regra ao pé da letra, em todos os sentidos, através da defesa da inerrância e da interpretação literal da maioria das passagens da Bíblia, completando um ciclo que se inicia nas religiões tribais, cujos ritos eram centrados em objetos e símbolos visíveis ou de alguma forma tangíveis, como o Sol, passa pelo Judaísmo, onde os símbolos e objetos religiosos diluem-se na própria identidade nacional, abstrata porém reconhecível de modo inequívoco e atinge seu ponto de ruptura no Cristianismo Primitivo, uma crença em que os objetos e símbolos situam-se num mundo totalmente espiritual, invisível e intangível. O ciclo passa pela Reforma e se fecha no Fundamentalismo Cristão, num movimento que retorna gradativamente à uma crença que não sobrevive sem objetos e símbolos materiais, visíveis e tangíveis, no caso a Bíblia e, para os neo-pentecostais, a vulgarização do milagre.

Este ciclo talvez explique, em parte, o porquê de a descrença religiosa ter deixado de ser tabu no Ocidente a partir do século XIX e principalmente no século XX, consolidando uma tendência que, originada no Iluminismo Europeu, terminou por derrubar a idéia de obrigatoriedade da crença.

Tomando por exemplo os Astecas, que, como muitos povos primitivos, tinham o Sol como representação material da divindade, temos que estabelecer a obrigatoriedade da crença num Deus solar não era uma preocupação razoável para as autoridades religiosas da Confederação pré Colombiana.
Não acreditar no Sol não é heresia, é loucura. Ele está lá no Céu, materialmente visível para qualquer um que não seja cego ou demente.

Não faz sentido instituir a obrigatoriedade da crença em algo, cuja existência se revela de modo inegável por si mesmo.

Os Judeus também não tinham tal preocupação, já que a existência de Israel era por si só aceita como prova suficiente da existência de Deus, logo, bastava olhar em torno para se ver o monumento que dava materialidade à crença.

O Cristianismo rompe esta tradição.
Seu símbolo e objeto máximo de fé, o Cristo ressuscitado, é tido como onipresente pelo dogma, mas é invisível e intangível fora dele.

Se os pagãos associavam o Sol com o deus Apolo, resta aos Cristãos associarem seu Deus a um Sol espiritual, só visível pelos eleitos.
O que é um eleito vai mudar muito de tempos em tempos dentro do Cristianismo, da definição gnóstica até a calvinista, mas o ponto é que a nova crença não podia ser sustentada por símbolos e objetos visíveis por todos, como o Sol ou a nação.

Mesmo os milagres, repetidamente anunciados ao longo da História Cristã como objetos visíveis que dão veracidade às suas crenças, só são visíveis às suas eventuais testemunhas, que são sempre numericamente poucas para exercer sobre os não cristãos o mesmo poder de convencimento que o nascer e o pôr do Sol, com extrema confiabilidade, cuidava de exercer sobre os Astecas.

Assim, o Cristianismo se desenvolve como uma religião de objetos e símbolos imateriais, invisíveis e intangíveis, cuja confiança na existência deles só era corroborada pela opção de crença do fiel, que uma vez incluído no corpo dos crentes passa a tê-los como inquestionáveis, suprimindo de si a necessidade de que lhes sejam materialmente visíveis ou tangíveis.

É nisto que se baseia, principalmente, a institucionalização da obrigatoriedade da crença no dogma Cristão.
Se negar a existência do Sol era coisa de alguém física ou mentalmente insano, negar a existência dos objetos e símbolos invisíveis da crença Cristã primitiva deveria ser coisa de quem é moral ou espiritualmente insano.

Assim, a descrença se torna dentro do meio Cristão a marca do pária, do outro, um sinal do demônio a ser temido e combatido para que não contamine o corpo místico da Igreja.
Consolida-se desta forma o segregacionismo Cristão que associa a descrença ao Mal, seja este mal relativo, produto do desconhecimento do que entendem como verdades sagradas, ou absoluto, produto direto da ação do diabo.

Quando na Idade Média o Cristianismo se torna a ideologia dominante do Ocidente, ou, mais ainda, a identidade ideológica do Ocidente, a obrigatoriedade da crença se manifesta como requisito para a aceitação social.
Numa Europa onde o Cristianismo é a única corrente de pensamento que consegue ultrapassar fronteiras e estabelecer uma identidade comum entre comunidades isoladas de um mesmo povo ou entre vários povos hostis entre si, descrer no que é Cristão significa não possuir lugar nesta sociedade, sendo a descrença reprimida antes pela certeza do isolamento do que pelo medo da punição.

Daí o fato de a grande preocupação da Inquisição em seus séculos de ativa ter sido sempre a heresia e a falsa conversão. Nunca o ateísmo como praticado hoje.
A Igreja Cristã remodelou a civilização Ocidental conforme suas próprias crenças de tal modo que criou um mundo onde estas crenças, apesar de centradas em objetos e símbolos invisíveis e intangíveis, tornaram-se para o crente tão materialmente reais quanto eram as crenças nas divindades solares e a crença judaica no Deus de Israel, razão pela qual a repressão religiosa medieval em parte se assemelha àqueles modelos por punir antes a desobediência manifesta – heresia, falsa conversão, bruxaria e comportamento relapso – do que ocupar-se em aferir e condenar a descrença pessoal não manifesta publicamente.

Com a Reforma Protestante e a cisão da Igreja Cristã Ocidental, reforça-se a condenação formal da descrença como caminho da perdição, mas se mantém a relativa despreocupação com ela, dado os ritos e sinais da religião dominante serem presentes demais para serem ignorados, mesmo continuando invisíveis seus objetos e símbolos.
Ajuda nisto o Cujus regio, ejus religio, regra que obrigava os súditos dos principados alemães a professarem a mesma religião de seu monarca, o que preservava a presença ambiental da crença Cristã e reforçava seu status de fator de identidade social. Como exemplo, cite-se que até hoje é a religião o único fator relevante que distingue alemães de austríacos. Aqueles predominantemente luteranos e estes quase todos católicos romanos.

Enquanto isto, o Islã seguiu sua própria trajetória de ascensão e declínio como Império secular e religioso, diferenciando-se da Cristandade no modo como tratava a descrença por estabelecer uma legislação rígida e detalhada, a Sharia, onde os limites admissíveis da incredulidade eram claramente definidos e, além deles, era mais prudente ao incrédulo se conter do que arriscar. Judeus e Cristãos usufruíam de tolerância especial, embora sobretaxados e mantidos em graus diferentes de segregação conforme o local e época.

Mas o que define o Islã é sua teologia monolítica, imune à heresia e ao cisma, e a imersão completa que exige de seus fiéis no cumprimento de seus rituais, que, muito além do exercício privado, estendem seus preceitos para toda a vida pública da comunidade muçulmana.

De novo a situação em que os ritos e sinais da crença Islâmica por serem onipresentes, formadores de identidade e necessários à aceitação social fazem com que a descrença seja tida dentro da comunidade como a opção dos loucos que se recusam a ver o Sol.

Tanto entre os Cristãos quanto entre os Islâmicos, ninguém mais parecia se lembrar que o Sol em questão não era visível para ninguém, nem para eles próprios.

É o Iluminismo Europeu que cumpre este papel de apontar para o Céu e dizer que o único Sol visível lá é a estrela em torno da qual a Terra orbita.
A combinação dos avanços da Ciência Experimental e do racionalismo filosófico trouxe de volta a idéia, há muito abandonada pelos Cristãos, de que as crenças deles não eram uma realidade cósmica, mas opiniões institucionalizadas.

No campo político, as Revoluções Americana e Francesa criam o Estado Laico, que desvinculou a identidade nacional da religião, estabelecendo um ambiente público regido agora por leis e princípios civis e não teológicos.
Leis e princípios civis devem ser necessariamente objetivos, logo, a crença que por séculos foi necessária para garantir o entrosamento e a aceitação do indivíduo na sociedade perdeu subitamente esta condição privilegiada.

Crer ou descrer passava a ser uma questão de foro íntimo e uma escolha pessoal. E só.

A crença reassume sua condição de Fé e descrer deixa de ser loucura ou absurdo para se tornar apenas uma opção entre concluir conforme as evidências objetivas analisadas ou, desprezando estas, aceitar as crenças como dogmas, verdades reveladas.

Para os que optam pelo racionalismo, o século XIX oferece as opções do Darwinismo e do materialismo.
Invertendo a tradição de séculos passados, agora é a crença religiosa que é apresentada como absurda e, em alguns casos, louca, despertando reações desencontradas em segmentos cristãos, que ora invocavam as citações bíblicas que denunciam a sabedoria de Deus como inalcançável à razão humana, ora tentavam provar que a razão confirmava suas crenças melhor do que a própria Fé.

Neste cenário, a religião Cristã ocidental, com sua divisão protestante fragmentada em miríades de seitas e sua divisão Católica Romana una, porém presa à inércia de sua paquidérmica macroestrutura, tenta reagir ao avassalador avanço das novas ideologias, que amparadas pelo fascínio despertado pelo progresso técnico ocupam cada vez mais espaço na sociedade.

A Cristandade, que na época medieval era o amálgama ideológico do Ocidente e temia apenas a heresia, agora não podia sequer identifica-la em seu meio. O que era heresia para um segmento Cristão era o culto oficial de outro segmento e vice-versa.

Numa realidade em que a heresia não pode mais ser combatida ou sequer identificada, as lideranças Cristãs, sentindo-se acossadas pelo avanço do racionalismo, voltam a acusar a descrença, na forma do ateísmo, agnosticismo e materialismo de ser o grande fator de perdição moral e espiritual do Homem.

Dois mil anos depois, o Cristianismo volta às suas origens, quando tentava convencer pagãos e bárbaros de que as coisas invisíveis de que falava eram reais, usando como ferramenta de convencimento as promessas de recompensas idílicas para os crentes e de indescritíveis tormentos para os que se recusassem a acreditar.
Quando a Igreja Cristã dominou o Ocidente, não era mais preciso convencer ninguém, apenas manter e administrar a crença já consolidada e protege-la contra a heresia.

Agora, no novo e terrível cenário, os descrentes voltam a ser preocupação e sua recusa em dizer que vêem os objetos e símbolos invisíveis da crença Cristã não pode mais ser desdenhada como excentricidade de tolos, devendo ser combatida como amoralidade de ímpios.

Não mais capaz de atar suas crenças à âncora da unanimidade social, a reação Cristã tenta associar a descrença à imoralidade, ignorância, rebeldia ou a quaisquer outros valores negativos que desestimulem fiéis de apostatarem ou motive incrédulos a converterem-se.

O Fundamentalismo surge como um dos equívocos desta reação, tentando a via improvável de defender a obrigatoriedade da crença, não pelo apelo ao significado moral dos símbolos invisíveis do Cristianismo, mas pela tentativa de convencer o máximo possível de pessoas de que estes símbolos não só são visíveis como materiais, estando todos indicados ou representados na Bíblia, cujo conteúdo inerrante devia ser interpretado, na maioria dos casos, literalmente.

Com esta tentativa, os Fundamentalistas Cristãos tentam materializar os símbolos da crença. Mas não na identidade nacional, como foi em Israel ou na identidade social, como foi na Idade Média.
Eles tentam criar um culto cristão solar, colocando a Bíblia no lugar do Sol e apontando-a como se apontassem o nascente, toda vez que sua crença é questionada.
A diferença, nunca percebida pelos Fundamentalistas, é que o Sol brilha sobre crentes e descrentes, enquanto livros sagrados só iluminam os que neles crêem.

Seu cristianismo solar bíblico naufraga tragicamente na aventura insólita do Criacionismo Científico, que ansiava trazer de volta os tempos de primazia do pensamento Cristão, quando toda tentativa de nega-lo implicava em risco de ver seus argumentos expostos ao ridículo, destroçados pela sabedoria dos Escolásticos. Tudo que os fundamentalistas conseguiram foi fazer com que a crença travestida de Ciência se tornasse motivo de risos e comentários jocosos nas Universidades e centros do saber.

A obrigatoriedade da crença havia sido sepultada no Ocidente, e o Fundamentalismo Cristão assumiu o papel de jogar-lhe a pá de cal.

terça-feira, 29 de março de 2011

Sobre as Provas Metafísicas da Existência de Deus

Por Acauan Guajajara

Publicado originalmente em 26 mar 2011, 12:47


É recorrente em debates entre religiosos e ateus a citação por parte dos religiosos das chamadas provas metafísicas da existência de Deus, geralmente as Cinco Vias propostas por Sto. Tomás de Aquino, citação frequentemente acompanhada de um desafio à refutação ou alguma referência insultuosa à inteligência do interlocutor ateu por ousar não crer no que estaria tão definitivamente provado.

Também é recorrente em debates minimamente informados sobre a História das Idéias que o ateu cite as contestações à metafísica de Kant e Husserl, nominalmente ou não, recebendo as réplicas esperadas que por sua vez também podem ser postas em dúvida. Em seu status quaestionis o debate é inconclusivo e terminam as partes acreditando naquilo que optaram por acreditar.

Já nos debates de Internet, geralmente orientados pelo que responde a primeira página do Google sobre o tema em discussão, se nota que as citações disponíveis sobre as provas metafísicas são postas e rebatidas sem deixar claro se a lógica do debate é compreendida em seus princípios básicos.

O primeiro ponto que raramente vejo discutido nestes debates é o significado e abrangência do conceito de prova.
Provar uma afirmação é apresentar evidências e argumentos que demonstrem sua veracidade, com um grau de certeza suficiente para desacreditar os argumentos e evidências que propõem que a afirmação seja falsa.

Como uma prova é constituída de evidências e argumentos, a abrangência da prova é limitada à abrangência dos argumentos e evidências que a constituem.
Quanto mais abrangente é o que se intenciona provar, mais abrangentes devem ser as evidências e argumentos usados como prova, ou seja, a prova vale até onde sabemos válidos seus argumentos e evidências.

Assim, as únicas provas absolutas conhecidas são as matemáticas, uma realidade abstrata na qual a abrangência da prova contém o que se pretende provar sem incertezas ou possibilidades alternativas.

A metafísica por sua vez estuda a realidade concreta que percebemos visando uma compreensão de sua estrutura e funcionamento que nos permita tirar conclusões sobre aspectos desta realidade situados além de nossa percepção.

Obviamente, qualquer prova metafísica só é válida dentro da abrangência da metafísica, ou seja, até onde admitimos as premissas da metafísica como verdadeiras, sendo suas premissas essenciais tomadas da hipótese de que a realidade concreta é necessariamente coerente, isenta de absurdos e apreensível pela razão humana.

Na metafísica parte-se de um conhecimento e experiência finitos, tomando-se por verdadeiro que tal finito represente uma amostra significativa do total absoluto da realidade e, baseado em tal confiança, tira-se conclusões de abrangência infinita, como as provas da existência de Deus. Ou seja, a metafísica, tira conclusões sobre o todo a partir do que sabe sobre a parte.

Na matemática é perfeitamente correto tirar conclusões sobre o infinito a partir do finito. Não importa que a circunferência tenha infinitos pontos, bastam três pontos para definir exatamente todos os demais infinitos pontos constituintes.

A metafísica faz sentido para explicar uma realidade criada e mantida por uma racionalidade divina, o que torna esta realidade específica uma premissa metafísica e implica que conclusões metafísicas sobre a veracidade da ordem racional divina da realidade caem em petição de princípio.

É importante lembrar que nas Cinco Vias Sto. Tomás de Aquino não conclui diretamente pela existência de Deus e sim que a realidade observada necessita de certos elementos para sustentar sua coerência racional e associa estes elementos "ao que chamamos Deus", nas palavras do filósofo.

Pode-se dizer que as Cinco Vias não provam a existência de Deus e sim que apresentam a "hipótese Deus" como explicação racionalmente sustentável para a coerência do cosmo.

A "hipótese Deus" como apresentada pela metafísica não se configura como prova de existência por não eliminar outras hipóteses e por só ser válida dentro das premissas estritas de que a coerência cósmica tida como verdadeira pela metafísica seja um fato e não uma interpretação do observador humano.
Também não se sustenta como demonstração de veracidade da afirmação "Deus existe" e sim como solução teórica para o problema da racionalização da existência de Deus, pois demonstrar em tese que a existência de um suposto ser explicaria determinados fatos não implica que este ser de fato exista.

Esta questão não passou despercebida a Sto. Tomás de Aquino, que declarou explicitamente a superioridade do ontológico sobre o lógico ao criticar o argumento de Sto. Anselmo, que propunha provar a existência de Deus com um argumento que, em última instância, se revela apenas um jogo de palavras.

Provar entidades infinitas só é possível em uma realidade matemática ou similar à matemática, na qual as propriedades de uma fração finita são idênticas às propriedades do todo infinito.
Em qualquer outra realidade em que esta lei não seja válida, qualquer fração finita é insignificante diante do todo infinito e, portanto, nenhuma prova cujas evidências e argumentos estejam contidos nesta fração terão abrangência suficiente para demonstrar a veracidade do todo infinito que pretendem provar.

No mais, a razão mais elementar entende que o autoevidente dispensa prova.

Com o justo reconhecimento à sabedoria de Sto. Tomás de Aquino, todo o mais para além do autoevidente só encontra provas absolutas na Fé pessoal.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Os Espíritos da Mata

Por Acauan Guajajara

Publicado originalmente em 07/03/2011 às 13:56

Antes do Código, os Homens e os Espíritos da Mata viviam em guerra.
Os Homens, feitos de matéria pesada, caminhavam sobre a terra e podiam viver sob a luz do dia.
Os Espíritos da Mata eram feitos de matéria leve. À noite os Espíritos da Mata vagavam entre o chão e as copas das árvores mais altas.
Durante o dia os Espíritos da Mata repousavam no corpo dos animais da floresta.

Como eram feitos de matéria leve, os Espíritos da Mata não podiam ferir os Homens. Os Homens não podiam matar os Espíritos da Mata, pois eles não morrem.

Os Homens combatiam os Espíritos da Mata durante o dia, matando os animais da floresta e abandonando suas carcaças ao sol, para que os Espíritos da Mata ficassem presos nos corpos mortos até que fossem totalmente consumidos.
Quando o sol desaparecia, os Espíritos da Mata deixavam os corpos dos animais, rumavam para o lugar onde os Homens dormiam, se misturavam aos humores e fumos noturnos que os homens respiravam e os envenenavam com a febre que matava ou enfraquecia os Homens.

A guerra durava gerações.
Um dia, jovens da tribo se revoltaram contra os anciãos que comandavam os Homens. Propunham que para vencer os Espíritos da Mata deviam entrar na floresta, matar todos os animais e queimar todas as árvores, assim os Espíritos da Mata não teriam onde se abrigar da luz do dia e sem a copa das árvores altas para lhes servir de teto se perderiam entre as estrelas.

O mais forte dos jovens rebeldes dizia que os Espíritos da Mata eram Aqueles que Não Morrem. Como os Homens morrem, era preciso queimar a floresta e matar os animais para derrotar os Espíritos da Mata, antes que eles exterminassem os Homens com a febre.

Temendo os jovens, os anciãos procuraram Mayra.
Desde o princípio Mayra dizia aos anciãos que a guerra entre os Homens e os Espíritos da Mata devia terminar.
Os anciãos morriam e os jovens se tornavam anciãos sem que o conselho de Mayra fosse acatado.

Mayra ouviu os anciãos e perguntou a eles se os Homens queriam dormir a noite sem temer o ataque dos Espíritos da Mata.
Os anciãos entenderam que Mayra queria terminar a guerra e responderam que fariam o que Mayra lhes dissesse para fazer.

Mayra disse aos anciãos que demarcassem na floresta um grande círculo, que derrubassem as árvores dentro do círculo, mas nenhuma fora dela, que marcassem o ponto onde o sol nasce e o ponto onde o sol se põe e fizessem uma linha que unisse os dois pontos. Que dividissem o círculo em oito partes iguais e que, partindo do centro do círculo, das linhas de cada uma das oito partes traçassem trilhas na floresta. Nestas trilhas derrubariam as árvores para abrir um caminho no qual passasse dois Homens lado a lado. E quando o círculo e as trilhas estivessem prontos, que erguessem ocas alinhadas ao longo do círculo, habitassem as ocas e deixassem a floresta para ser habitada pelos Espíritos da Mata.

Os anciãos fizeram conforme as palavras de Mayra.
Os jovens derrubaram as árvores para fazer o círculo e a trilha, acreditando estar fazendo a guerra contra os Espíritos da Mata.

Quando o círculo, as trilhas e as ocas ficaram prontas, Mayra procurou os Espíritos da Mata.
Os Espíritos da Mata não falavam a língua dos Homens, mas Mayra falava a língua deles.
Por toda a noite Mayra e os Espíritos da Mata conversaram sobre a guerra.
Quando amanheceu, os Espíritos da Mata foram para o repouso e Mayra voltou e reuniu os anciãos na oca maior.

Mayra disse aos anciãos que a guerra entre os Homens e os Espíritos da Mata estava terminada.
Durante o dia os Homens caminhariam sobre a terra e sob a luz. Matariam apenas os animais que precisassem para comer e comeriam toda a carne de cada animal que matassem.
À noite a floresta pertenceria aos Espíritos da Mata e os Homens se manteriam dentro do círculo e das trilhas.
Mesmo nas noites sem lua, os Espíritos da Mata não invadiriam o círculo nem qualquer das trilhas onde os Homens dormissem ou caminhassem.

Mayra também advertiu os anciãos. Disse que instruíssem os Homens para cumprirem o acordo, caso contrário os Espíritos da Mata caminhariam sobre a terra, como os Homens.

Os anciãos reuniram os Homens e disseram que a guerra com os Espíritos da Mata havia terminado, mas por orgulho assumiram a honra para si próprios, não contaram que fora Mayra quem fez o acordo que terminou a guerra.

Então os anciãos disseram aos jovens que os obedecessem ou sua magia, que fora poderosa para silenciar os Espíritos da Mata, se voltaria contra os desobedientes.
Os jovens temeram a ameaça dos anciãos e obedeceram quando ordenaram que só matassem animais para comer, comessem os que matassem e só caminhassem na mata à noite pelas trilhas, omitindo que fora Mayra quem lhes ensinara a fazer assim.

Um dia, o mais forte dos jovens, aquele que queria queimar a floresta para derrotar os Espíritos da Mata, reuniu outros jovens e os convenceu que os Espíritos da Mata cederam por medo de suas ameaças e não pela magia dos anciãos.
Para provar o que dizia, esperou uma noite sem lua, reuniu os jovens que o seguiam e caminhou com eles por uma das trilhas. No coração da mata, abandonou a trilha e adentrou sozinho na floresta, onde atirou ao chão a carcaça de animal que matara e não comera, em desafio aos Espíritos da Mata.

Os Espíritos da Mata viram que os Homens traíram o acordo e sabiam que os anciãos traíram Mayra. Porém deixaram o jovem rebelde entrar e sair da floresta sem molestá-lo, pois os Espíritos da Mata tinham seus ardis.

Quando o jovem rebelde voltou ileso do coração da mata, os demais concordaram que não mais obedeceriam aos anciãos, que eram fracos e mentirosos. Entrariam no grande círculo, matariam os anciãos e os fortes comandariam os Homens.

Os Espíritos da Mata sentiram as intenções dos jovens e os seguiram. Como os Homens traíram o acordo, podiam agora entrar nas trilhas e no grande círculo. Quando chegasse a hora, caminhariam sobre a terra como os Homens e os matariam. Não mais com os humores e fumos causadores da febre, mas com a força da matéria pesada.

Quando os jovens se aproximaram do grande círculo, os anciãos os esperavam para puni-los por sua desobediência, sem imaginar que os jovens pretendiam matá-los.

Só Mayra viu a cena completa, pois podia ver o que os Homens não viam.
Mayra viu que os anciãos confiavam que os jovens ainda temiam a magia deles, viu que os jovens queriam matar os anciãos para comandar os Homens e viu que os Espíritos da Mata seguiam os jovens para – depois que os Homens se matassem entre si – matar aqueles que sobrassem.

Quando os anciãos, os jovens e os Espíritos da Mata se encontraram na entrada do grande círculo, Mayra surgiu entre eles.

Todos temeram Mayra, pois cada um, a seu modo, havia traído o acordo.

Por um momento os anciãos, os jovens e os Espíritos da Mata ficaram imóveis sob o olhar de Mayra.
Então, num movimento súbito e sem dizer palavra, o mais forte dos jovens ergueu sua clava e golpeou pesadamente a cabeça de Mayra.
O jovem soltou um grito selvagem enquanto o corpo de Mayra caía ao chão, com o crânio fendido.

Os Espíritos da Mata circundaram o corpo de Mayra e viram nele que era chegado seu tempo de caminhar sobre a terra e destruir os Homens.
E da escuridão que emanou da ausência de Mayra, os Espíritos da Mata assumiram a forma dos medos dos Homens, pisaram o chão da terra pela primeira vez e se fizeram Anhangá.

Quando os anciãos viram Anhangá se encheram de medo e tentaram fugir, mas os jovens tomados de fúria não viram Anhangá e atacaram os anciãos para matá-los.

Anhangá esperou que os jovens matassem os anciãos.

Quando o último ancião foi golpeado, os jovens soltaram gritos de vitória, mas quando a fúria passou Anhangá se mostrou a eles e a fúria foi substituída pelo terror.
Os jovens largaram suas armas e tentaram fugir, mas Anhangá que assumia a forma dos medos dos Homens os paralisou e dançou em torno deles urrando.

Anhangá encarou o mais forte dos jovens, que não ousou enfrentar seus olhos vermelhos. O jovem mais forte chorou e implorou, e quanto mais chorava e implorava mais terror Anhangá lhe infringia, até que o jovem caiu de joelhos e Anhangá o ergueu sobre sua cabeça, despedaçou seu corpo e lançou os pedaços sobre os demais jovens, que choravam apavorados diante de Anhangá.

Exceto um.
Um jovem que não se unira aos rebeldes, não conspirou contra os anciãos e não violou o acordo com Mayra.
Anhangá sentiu o cheiro do jovem. Seu cheiro não emanava medo como o dos demais.
Anhangá se pôs diante do destemido e o fitou nos olhos, mas o jovem enfrentou seu olhar. Anhangá urrou e dançou, mas o jovem permaneceu firme e sem medo, mesmo Anhangá assumindo todas as formas de todos os medos dos Homens.

Anhangá decidiu deixar aquele jovem e matar todos os outros Homens. Anhangá sabia que os Homens temiam a solidão e quando fosse o último dos Homens o jovem temeria Anhangá, Anhangá o mataria e os Espíritos da Mata voltariam a pairar sobre o chão e sob a copa das árvores, sem que ninguém mais os ameaçasse.

Anhangá então começou a matar os Homens, que um por um, paralisados pelo medo, eram despedaçados pelas garras dele.
E quando pareceu que os Homens deixariam de caminhar sobre a terra para sempre, Anhangá parou de matá-los e sem motivo aparente recuou para onde estava o corpo de Mayra, até estancar imóvel e silencioso diante dele.

O jovem que enfrentara o olhar do Anhangá repetiu o feito e viu que Anhangá estava com medo. O jovem viu o medo nos olhos do Anhangá, mas não entendia, pois os anciãos ensinaram que os Espíritos da Mata não sentiam medo, porque não morriam.

Por instantes o silêncio engoliu a mata.
E então veio o estrondo de mil trovões, que não soavam das nuvens do céu, mas do crânio fendido de Mayra.
A escuridão da noite penetrou o crânio de Mayra e o mundo dos Homens e o mundo dos Espíritos da Mata foi tragado para dentro do crânio e depois cuspido para fora dele com violência.

E do crânio de Mayra, entre raios de tempestades surgiu Tupã.

Tupã ordenou ao Anhangá que se retirasse do grande circulo.
Anhangá obedeceu.

Tupã falou aos Espíritos da Mata.
Disse que os Espíritos da Mata retornariam à matéria leve e não mais caminhariam sobre a terra, exceto nas noites sem lua, ao longo das trilhas da mata, pois como os Homens traíram o acordo, perderam o direito à proteção das trilhas, que pertenceriam a Anhangá, que poderia atacar os Homens que violassem a floresta.
Tupã proibiu Anhangá e os Espíritos da Mata de invadir o grande círculo.

Tupã falou aos Homens.
Disse que os Homens caminhariam sobre a terra e viveriam sob a luz do dia, os Espíritos da Mata pairariam entre o chão e a copa das árvores à noite, repousariam no corpo dos animais durante o dia e de sobre a copa das árvores altas, onde o gavião voa, no dia e na noite, Tupã vigia a todos.

Tupã falou ao jovem que fitou a face de Anhangá e perguntou seu nome.

- Sumé, respondeu o jovem.

Tupã leu a alma de Sumé e viu que naquela alma as Antigas Virtudes escreveram o Código.

Tupã ordenou aos Espíritos da Mata que retornassem à floresta.
Depois ordenou aos Homens que enterrassem seus mortos e cumprissem o acordo que fizeram com Mayra.

Tupã disse aos Homens que sempre que olhassem a floresta à noite, os Espíritos da Mata estariam olhando para eles. Os Homens não os verão, mas saberão que olhos que não vêem os observam.
Tupã decretou que a mata e a noite seriam os limites e fronteiras do Homem.
Dentro do grande círculo da taba o Homem conheceria e dominaria a natureza.
Na mata escura os elementos e o desconhecido reinariam.
Sobre a taba iluminada dos homens e sobre a mata escura Tupã vigia do céu, que se sobrepõe ao mundo dos Homens e ao mundo dos Espíritos da Mata, os reconhece e os une em um plano distante que governa a luz e as trevas.

Quando Tupã se calou o sol nasceu.
Sob a luz do dia, os corpos despedaçados lembraram os Homens dos horrores da noite e os Homens temeram.

Sumé olhou demoradamente um gavião no céu, depois falou aos Homens e disse que não temessem.
- O forte defenderá o fraco e lutará pelos que não podem lutar.
- Juntos, caminharemos sobre a terra e deixaremos nela nossa marca e o brilho de nossas pegadas ofuscará o dia e expulsará a noite.

Os Homens ouviram Sumé.

Antes de adormecerem nos corpos dos animais da floresta, de fora do grande círculo os Espíritos da Mata também ouviram.
E compreenderam.

Como manda o Código.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Crônicas da Ante-sala do Inferno

Por Acauan Guajajara

Publicado originalmente em 10/4/2005 17:24:13

1. Tucão

Tucão não tinha dúvidas sobre onde estava. A vida que levou não lhe permitia esperança em alternativas.

Só não entendia o porquê da demora.
Não estava com medo.
O que poderia encontrar ali que já não tivesse testemunhado? Não apenas testemunhado. Ordenado.

Ser lançado no fogo?
Perdera a conta de quantos inimigos mandara para o microondas ainda vivos.
Ainda podia ouvir seus gritos, implorando para que atirassem neles assim que as chamas dos pneus começavam a ganhar força.
- Bundões, pensou Tucão.
A maioria desmaiava logo no começo, por causa da fumaça preta e mal sentia as queimaduras.
- Só o Tonico do Macaco foi macho até o fim. Morreu me encarando. Deu vontade de aliviar a do cara e dar um tiro na testa dele, mas se demonstrasse piedade o resto da turma não ia aprender a lição do exemplo, ou pior, ia achar que o Tucão tava ficando mole, aí ia sobrar pra mim.

Tucão seguia imaginando o que poderiam fazer com ele por ali
Enfiar garfos na carne?
Já tinha cortado orelhas, pés e mãos o suficiente para montar vários caras inteiros só com os pedaços. O que era terror para a gente do asfalto era a rotina de vida do Tucão.

Não tinha medo, só estava incomodado com a espera. Parecia que estava lá há séculos. Estava ansioso para encarar as broncas de uma vez e acabar com aquela agonia, aquilo sim é que estava sendo um inferno.

O tempo não passava. Vez por outra Tucão pensava em argumentar com alguém, pedir para aliviar a dele, soltar aquela conversa de que foi criança pobre, sem oportunidades – aquela coisa de vítima da sociedade.
Mas desistia logo da idéia.
Tucão não era besta. Só os babacas da faculdade é que acreditavam naquelas besteiras. Se ele, o Tucão, não era bobo para achar que aquilo justificava seus atos, não ia ser o manda-chuva aqui do pedaço que ia cair nesta lábia.

A espera parecia interminável para o Tucão, que já tinha relembrado toda a sua vida em detalhes. Talvez mais de uma vez, talvez milhares de vezes. Era impossível ter certeza naquele lugar.

Lembrou de quando era chamado de Tucão Gravata, pela sua assinatura nas vítimas – cortava a garganta e puxava a língua para fora, que ficava com aparência de uma gravata vermelha saindo pelo pescoço do corpo. Um enfeite que avisava os manos que o Tucão não era de brincar em serviço.

É..., naquela vida era preciso meter bronca, assustar os caras. Quando eles se acostumavam com as broncas era hora de inventar coisa nova, deixar claro quem amedrontava e quem era amedrontado – o cara que amedrontava mandava. Era a lei.

Por isto Tucão não estava com medo, ele era o que amedrontava.

Só temia que aquela espera não acabasse nunca.

Tucão voltou a pensar se contando a história da criança pobre com jeito, talvez conseguisse reduzir a espera, acabar com aquela agonia.
Não, só babaca de faculdade acredita nisto. Igual aquela doutorazinha idiota.

Tucão teve a impressão de que era a milésima vez que repetia aquilo.


2. Pastor Mirandinha

O Pastor Mirandinha ainda conservava a esperança.

Talvez as coisas não fossem tão imediatas como ensinava em sua Igreja.
Talvez os anjos precisassem de um tempinho para preparar a morada ou dar ao salvo um último momento para refletir sobre seus pecados, se arrepender e entrar na glória.

Sim, era isto.
Repassaria seus pecados, se arrependeria em nome dele e sua entrada na morada celestial não tardaria mais.

Mas estava tardando.
Pastor Mirandinha não entendia.

Ele era um salvo. Remido no sangue do cordeiro. Um filho de Deus cujo nome foi escrito na glória pelo sacrifício vicário daquele de quem já deveria estar comungando da presença.

Mas não estava comungando da presença dele e nem de ninguém.
Apenas esperando e não entendia o porquê da espera, que parecia interminável.

Não podia ser por aquele pecado daquela vez. Seu momento de fraqueza. Não, ele era um salvo, um justo – luz do mundo e sal da Terra. Não seria aquele pequeno deslize que lhe fecharia os portões da Jerusalém Celestial.

Ou fecharia?
Não, nunca. Aquele pensamento foi soprado pelo inimigo num último ataque tentando lhe tirar a Fé. Querendo fazer com que morresse na praia agora que estava tão perto do objetivo que pregara ser a herança prometida a todos que compartilhavam sua crença.

O Pastor Mirandinha procurou sua Bíblia.
Não era a primeira vez, nem a segunda que fazia isto. Talvez a conta passasse em muito dos mil e mesmo assim insistia em procurar por uma Bíblia que não estava lá.
Nada estava lá.

Era apenas ele e a espera.

Tudo bem, pensava o Pastor Mirandinha, deve faltar apenas mais um pouco. Logo ouvirei as trombetas e os anjos me explicarão o porquê desta demora. Com certeza haverá um motivo tão sublime que este pequeno incidente será recontado com risos pela eternidade que o aguardava, uma eternidade sem lágrimas.

Terminou de pensar isto e procurou por sua Bíblia de novo. Era um ato reflexo. Não conseguia controlá-lo desde que chegara ali, já não sabia mais há quanto tempo.

Lembrou mais uma vez daquele pecado. Um ato de fraqueza, como o de Pedro ao negar a ele. Não seria por aquilo que seria lançado no... Não, não podia nem pensar na possibilidade. Era o Inimigo de novo. Ele era um salvo, a espera fazia parte de algum propósito superior, que ele não entendia agora, mas que lhe seria explicado no tempo devido.

A ele só cabia esperar, esperar e esperar.

Pastor Mirandinha procurou sua Bíblia mais uma vez.


3. A Mulher Letrada

- Fúteis e indecisos - aqueles que não tomaram partido do bem ou do mal são rejeitados pelo Céu e Inferno.

Aquela passagem de A Divina Comédia de Dante lhe voltava a mente com uma freqüência tão incômoda quanto a espera em si.

Já havia examinado a situação em que se encontrava e havia chegado à única conclusão possível – não havia dados suficientes para análise.
O ato de esperar não lhe fornecia informações passíveis de uma compilação estatística representativa, logo, nada estaria logicamente definido enquanto mais fatos não estivessem disponíveis.

- Fúteis e indecisos..., forçou-se a abortar aquele pensamento que insistia em voltar contra a sua vontade.
Gostava de citações, conhecia milhares de memória. Repassa-las, classifica-las e correlaciona-las poderia ser uma boa forma de dar serventia útil à espera.
Mas sempre que tentava, aquele trecho que descrevia o destino dos abandonados entre o Aqueronte e o Limbo era sempre o primeiro resgatado por sua memória, o que a fazia desistir de tentar daquele modo tirar proveito intelectual da condição em que se encontrava.

Mas havia outras memórias.

Organizadas e catalogadas em sua mente de um modo mais metódico que a maioria das bibliotecas.
Procurou pelas lembranças que lhe poderiam ser úteis naquela situação.

- Tucão.

Se a intenção era encontrar uma opção para pensamentos dantescos, Tucão Gravata era o nome certo.

Tinha certeza que compreendia melhor o mundo de Tucão do que ele próprio.
Afinal, havia feito um estudo das três gerações de seus ascendentes e traçado um rigoroso estudo sobre a cadeia de pressões sociais que construíram aquela personalidade polêmica.

Havia mergulhado tão completamente na empreitada de provar que a vida de Tucão poderia ser explicada pelo determinismo histórico, que não hesitou em se aprofundar em seu estudo um tanto além do que previa a ortodoxia da pesquisa acadêmica.

Bem, ela se considerava um tanto além do tipo de mulher que deixava as convenções burguesas ditar como deviam ser seus relacionamentos.

- Fúteis e indecisos -..., por isto aquela inconveniente citação não lhe dizia respeito.

Era séria e decidida a ponto de se aprofundar no submundo que assustava suas colegas na mesma proporção que as excitava.
Se tivesse que ter um papel na Comédia, seria aquele que Dante atribuiu a Virgílio e não como um dos figurantes anônimos de quem o poeta disse só merecerem desprezo.

- Tucão.

Lembrou-se do episódio em que o pastor da comunidade havia anunciado em sua Igreja que estava fazendo jejum e oração para ter forças para repreender os demônios que inspiravam Tucão, que, uma vez expulsos as potestades do ar que o dominavam, apresentaria seu testemunho naquele púlpito de como fora liberto pelo poder do Espírito.

Tucão, quando soube, riu e mandou que trouxessem o pastor a sua presença. Quando perguntaram se queria que o levassem para o microondas ele riu de novo, disse que quem esculachasse o cara pagaria o preço da desobediência.

- Ele não disse que converteria o Tucão? Vamos ver quem converte quem.

Ela presenciou o Tucão dizer aquelas palavras.
Também viu como Gravata recebia todos os dias, a portas fechadas, o religioso, que o visitava sempre com a mesma Bíblia embaixo do braço.
Ela notou que o pastor saía com uma aparência abatida todas as vezes, enquanto Tucão soltava fartas gargalhadas assim que o ouvia bater a porta.

Ela e o pastor nunca trocaram uma palavra, ou melhor, apenas uma, vinda da parte dele.

Um dia ela notara que o pastor, após ter saído com Tucão, voltara sem sua Bíblia.
Ela apenas olhou para o braço direito dele, mantido na mesma posição usual de quando carregava o livro – reflexo condicionado por anos de hábito, sem que nada estivesse sendo seguro por ele.

O pastor percebeu o olhar e disse apenas:
- O microondas..., o microondas...

Por tudo isto ela não era, não podia ser fútil ou indecisa. A citação de Dante não dizia respeito a sua pessoa.

Ela tinha conhecimento suficiente da realidade dos fatos para entender todo o processo quando a espera terminasse.

Mas a espera parecia não terminar nunca.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Íncubus e Súcubus

por Acauan Guajajara

Publicado originalmente em 21/5/2004 17:09:26

Os roteiristas responsáveis pelos exorcismos televisionados da Organização Universal deveriam ler um pouco mais de mitologia da Idade Média para enriquecer os diálogos entre pastores e demônios.
Demônio da Universal só sai dos quintos para atrapalhar vida financeira do crente que atrasou o dízimo ou para botar uma amante gostosona no caminho do marido da fiel inadimplente com a Fogueira Santa.

Não sei como Astaroth, Leviatã ou Asmodeu ainda não moveram um processo contra a Rede Record por calúnia, injúria e danos morais, reclamando que eles não têm absolutamente nada a ver com aqueles imbecis de cara eletronicamente escondida, que usam aquela voz do Pato Donald para repetir sempre as mesmas besteiras.

Mas não é destas primadonas infernais que eu quero falar, mas de dois interessantes grupos de coadjuvantes das hostes caídas: os Íncubus e Súcubus.

Íncubus e Súcubus são demônios especializados na sedução sexual, visitando o leito das vítimas durante a noite e transando com elas.
Os Íncubus são as entidades masculinas e os Súcubus as femininas.
Só digo que se os Súcubus são mesmo aquelas gostosonas nuas que aparecem nas representações artísticas, quem é atacado por eles de vítima não tem nada.

Mas são personagens legais, um resumo de como a mitologia de uma sociedade pode absorver e traduzir os efeitos da repressão sexual.

Íncubus e Súcubus tinham uma predileção por quem não deveria ter predileção por eles, como monges, freiras e mulheres solteiras e solitárias, que segundo os relatos eram vítimas tão freqüentes destas criaturas que já haviam desistido de trancar as janelas.

As incursões de Íncubus e Súcubus eram denunciadas pelas poluções noturnas nos homens e pelos sonhos eróticos nas mulheres. No caso destas, por vezes o incubus se empolgava e deixava a coitada em estado interessante, com uma barriga para explicar.
Nestes casos as mulheres tinham uma escolha nada confortável. Confessar que foi o namorado e ser renegada por todos como vadia, inclusive pelo namorado ou contar que foi estuprada por um Incubus e torcer para o idiota do pai acreditar e o desgraçado do padre não acusa-la de ser uma bruxa.

O mago Merlim, mentor do rei Artur, segundo a lenda, era fruto de uma destas uniões de uma mulher humana com um Incubus.

Com o homem, sem neuras. De certa forma o Súcubus era a mulher ideal. Bonita, gostosa, aceitava uma noite de amor sem compromisso e não ficava esperando você ligar no dia seguinte. Mesmo porque o telefone ainda não tinha sido inventado.
Além disto, o Súcubus não engravidava, não tinha TPM e não te levava para conhecer a família dele.

Imaginem um pobre camponês medieval chegando em casa depois da farra, de madrugada, bêbado, cheirando a perfume barato (que devia ser forte pra caramba, já que a turma da época não tomava banho) e dando de cara com a mulher, já pronta para meter o cinto de castidade nas partes baixas dele. O pobre camponês faz uma cara de assustado e diz: - Mulher, você não sabe o que aconteceu, fui atacado por um Súcubus.
Deve ter funcionado pelo menos uma vez, pois alguém acreditou e passou esta história para frente.

Íncubus e Súcubus aparentemente estão mais ligados às antigas mitologias druídicas celtas do que ao cristianismo, tendo sido promovidos a condição de demônios por um destes sincretismos que a igreja não reconhece, mas também não nega.
A distância dos Íncubus e Súcubus dos papéis usuais atribuídos aos demônios na mitologia cristã fica clara no fato de o objetivo destes seres não ser levar os homens e mulheres à perdição através do pecado da luxúria, mas drenar deles suas energias vitais através do ato sexual. Algo mais próximo do vampirismo do que da religiosidade clássica.

Como criaturas sobrenaturais detestam céticos e nunca se manifestam para eles, é muito improvável que um Súcubus com a cara da Gisele Bundchen e o corpo da Juliana Paes apareça na minha cama à noite, nua, ávida por sexo selvagem e sem compromisso.

Vou me converter.

IBLIS

por Acauan Guajajara

Publicado originalmente em 4/5/2004 14:52:17

"Criamo-vos e vos demos configuração, então dissemos aos anjos: Prostrais-vos ante Adão! E todos se prostraram, menos Iblis, que se recusou a ser dos prostrados. Perguntou-lhe (Deus): Que foi que te impediu de prostrar-te, embora to tivéssemos ordenado? Respondeu: Sou superior a ele; a mim criaste do fogo, e a ele do barro."

7ª SURATA, AL A’RAF, Os Cimos, versos 11 e 12

"Tenho muitos nomes."

Lúcifer


Iblis é o correspondente na teologia islâmica ao Lúcifer da teologia cristã.

É difícil escolher entre a afirmação de que se tratam de duas versões do mesmo personagem ou de dois personagens distintos, dado que as semelhanças entre ambos são óbvias e as distinções sutis, porém decisivas.

Uma característica diferencial importante é que Lúcifer foi formatado dentro da teologia cristã fundindo-se num mesmo personagem a serpente do Éden, o Satanás hebraico do Livro de Jó e o Demônio tentador dos Evangelhos.
A forma final do anjo rebelde, Primeiro entre os Caídos, foi definida mais pelo poema épico religioso Paradise Lost, de John Milton, do que pela Bíblia.

Já Iblis, seu alter ego árabe, tem sua origem e natureza explicita e diretamente descritas no Corão, de modo repetitivo em várias suratas, no melhor estilo da Recitação de Mohamed.
Isto torna Iblis teologicamente mais autêntico do que Lúcifer, mesmo sendo ambos variantes da tradição judaica sobre o tema.

Iblis e Lúcifer têm em comum o fato de representarem o mal, de se dedicarem a afastar o homem de Deus e o título de Satã ou Al Shaitan, O Adversário, em hebraico e árabe respectivamente.

Mas enquanto o Portador da Luz é tido e reconhecido como um anjo, Iblis é um Jinn, um gênio, uma entidade que o Islã herdou da mitologia árabe tornando-o o que Samir El-Hayek, tradutor do Alcorão para o português, define como sendo um espírito ou uma força invisível ou oculta.

Os Jinns, dos quais Iblis é o mais proeminente, não possuem os poderes sobrenaturais de Lúcifer e seus demônios. Eles têm a capacidade de influenciar os homens, mas só aqueles que espontaneamente escolherem segui-los, dando a entender que os Jinns só podem conduzir ao mal quem é predisposto a ele, ao contrário de Satanás/ Lúcifer, que tem por objetivo corromper todas as almas, como prova a tentação feita ao próprio Jesus de Nazaré, melhor exemplo de que na teologia cristã, ao contrário da islâmica, ninguém está livre do assédio do demônio.

Um outro diferencial interessantíssimo entre Iblis e Lúcifer é que ambos se dedicam à queda do homem como uma vingança contra Deus, mas ao contrário de Lúcifer, que toma esta missão para si à revelia da vontade divina, Iblis o faz com a autorização expressa de Deus, como lemos na Sura 15:

Criamos o homem de argila, de barro modelável. Antes dele, havíamos criado os gênios de fogo puríssimo. Recorda-te de quando o teu Senhor disse aos anjos: Criarei um ser humano de argila, de barro modelável. E ao tê-lo terminado e alentado com o Meu Espírito, prostrai-vos ante ele. Todos os anjos se prostraram unanimemente, Menos Iblis, que se negou a ser um dos prostrados.
Então, (Deus) disse: Ó Iblis, que foi que te impediu de seres um dos prostrados?
Respondeu: É inadmissível que me prostre ante um ser que criaste de argila, de barro modelável.
Disse-lhe Deus: Vai-te daqui (do Paraíso), porque és maldito! E a maldição pesará sobre ti até o Dia do Juízo.
Disse: Ó Senhor meu, tolera-me até ao dia em que forem ressuscitados!
Disse-lhe: Serás, pois, dos tolerados, Até ao dia do término prefixado.
Disse: Ó Senhor meu, por me teres colocado no erro, juro que os alucinarei na terra e os colocarei, a todos, no erro; Salvo, dentre eles, os Teus servos sinceros.
Disse-lhes: Eis aqui a senda rela, que conduzirá a Mim! Tu não terá autoridade alguma sobre os Meus servos, a não ser sobre aqueles que te seguirem, dentre os seduzíveis. O inferno será o destino de todos eles.

15ª SURATA, AL HIJR, verso 26 – 43


"Os motivos pelos quais Deus teria autorizado Iblis a espalhar o mal entre os homens parece ser uma incógnita mesmo entre os teólogos muçulmanos, já que o site da Sociedade Beneficiente Muçulmana do Rio de Janeiro registra o seguinte comentário sobre o assunto:
Sabemos, por certo, que a batalha entre Adão (o homem) e Iblis (Satã) é muito antiga.
A guerra entre os dois foi declarada por Satã por causa do mal inerente a ele, de sua vaidade, inveja e ressentimento em relação ao homem. Ele teve a Divina permissão para realizar esta batalha por alguma razão que só Allah conhece
."

Fonte: Às Sombras do Alcorão, SBMRJ


Mas não há dúvidas quanto à característica mais marcante tanto de Iblis quanto de Lúcifer ser comum aos dois: orgulho inabalável.
Mesmo cara a cara com o poder infinito de Deus, ciente das consequências de seu ato, Iblis recusa-se a se prostar diante de quem não reconhece como seu superior, tal como Lúcifer proclama preferir reinar no Inferno do que servir no Céu.

Orgulho parece ser o primeiro pecado para as duas grandes religiões monoteístas, o que é compreensível dado que uma proclama que a exaltação do homem provém de sua humilhação enquanto a outra denomina todos os seus fiéis como submissos.

Os que negam a Iblis e a Lúcifer qualquer virtude, deveriam enxergar neles pelo menos bravura, bravura alimentada pelos motivos errados talvez, mas que nem por isto deixa de sê-la.

Dito isto e para encerrar de um modo ameno, a diferença mais reconfortante para o observador da religião entre Lúcifer com seus demônios e Iblis com seus Jinns é que estes, segundo os muçulmanos, não tem o poder de incorporar humanos e portanto não existe exorcismo no Islã, poupando a todos nós do constrangimento de assistir espetáculos conduzidos sob o bordão “Sai Jinn em nome de Mohamed”.
O que a gente vê por aí já é mais do que suficiente.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Nietzsche revisitado – a síntese de O Anticristo

Por Acauan Guajajara

Publicado originalmente em 21/11/2005 às 17:59

"E desde então surgiu um problema absurdo: "Como Deus pode consentir nisto?" A razão perturbada da pequena comunidade achou uma resposta de um absurdo verdadeiramente terrível: Deus deu o seu filho para o perdão dos pecados, em sacrifício. Ah! Como terminou de uma assentada o Evangelho! O sacrifício expiatório na sua forma mais desprezível, mais bárbara, o sacrifício dos inocentes pelas faltas dos pecadores! Que espantoso paganismo! Não tinha Jesus suprimido até a idéia do pecado? Não havia negado o abismo entre Deus e o homem, vivido essa unidade entre Deus e o homem, que era a sua boa nova?... E isto não era para ele um privilégio! Desde então se introduz a pouco e pouco no tipo do Salvador a doutrina do "juízo" e da vinda, a doutrina da morte por sacrifico, a doutrina da ressurreição que escamoteia toda a idéia de salvação, toda a só e única realidade do Evangelho a favor de um estado depois da morte... Paulo tornou lógica essa concepção - concepção descarada! – com aquela insolência rabínica que o caracteriza em todas as coisas: "Se Cristo não ressuscitou dentre os mortos, é vã a nossa fé". E de um só golpe converte-se o Evangelho na promessa irrealizável mais digna de desprezo, a doutrina insolente da imortalidade pessoal... O próprio Paulo a ensinava ainda, como uma recompensa!"

Friedrich W. Nietzsche, O Anticristo, capítulo 41

No capítulo destacado acima de O Anticristo, Nietzsche nos apresenta o que pode ser a síntese de sua crítica ao cristianismo.

O filósofo aponta a morte do Cristo como o momento que decide o destino do Evangelho, quando, nas palavras do autor, a boa nova foi seguida de perto pela pior de todas - a de Paulo.

A tese é que a crucificação de Jesus de Nazaré colocou seus seguidores diante de um dilema: O mestre morreu. Qual o significado de sua morte?
Uma solução seria os seguidores darem conotação heróica à morte de seu Messias, já que o herói conhece o triunfo em vida e a glória na morte.

Mas, para Nietzsche, não havia como identificar a morte do Cristo com a morte do herói, pois para ele a noção do herói é essencialmente antievangélica.

Até a sua morte, Jesus de Nazaré foi um pregador rejeitado pelos judeus e um líder popular que nada conseguiu contra o poder romano. Na religião e na política não triunfou em vida.
Preso sem resistência, vendo o povo se voltar contra ele e seus seguidores mais próximos fugirem apavorados, terminou executado de modo humilhante.

Sem triunfo e glória, o cristianismo corria o risco de perecer no berço.

É aí que surgem as doutrinas do sacrifício vicário, da ressurreição, do segundo advento e do juízo.

Tais doutrinas criaram a fé de que a morte na cruz foi o triunfo de uma missão divina destinada a remir os pecados humanos visando à glória de Deus.
O triunfo e a glória que não foram testemunhados factualmente são definidos espiritualmente e só se mostrariam em sua plenitude no fim dos tempos.

É contra isto que Nietzsche se enfurece.
Ao contrário do que muitos possam pensar, em nenhum trecho de O Anticristo encontramos uma declaração de repulsa ao Evangelho em si.
O filósofo renega o que chama de "conversão do Evangelho na mais desprezível e irrealizável das promessas, a petulante doutrina da imortalidade do indivíduo", pois para ele "a boa nova não se manifesta através de milagres, recompensas, promessas ou escrituras. É, do principio ao fim, seu próprio milagre, sua própria recompensa, sua própria promessa, seu próprio reino de Deus”.
Nietzsche vê na origem do cristianismo um movimento de características budistas, que promete a tranqüilidade e felicidade na terra. Este movimento conduzido por Jesus de Nazaré em vida, teria findado com a morte na cruz, sendo substituído por outro movimento instituído em torno dos novos significados dados a esta morte – é este o cristianismo que o filósofo rejeita e critica.

Visto desta forma, O Anticristo deveria chamar-se O Ante-Paulo, já que é ao apóstolo de Tarso que Nietzsche dirige suas mais duras críticas, tendo-o como expressão do sangue de teólogo que despreza e representação do instinto de sacerdote que odeia.
Paulo é mostrado como um falsário que rejeita a proposta primitiva do Evangelho de felicidade real nesta vida, a substituindo por uma felicidade prometida para uma outra vida (e ainda assim vinculada a condições), transformando o cristianismo em uma "religião que promete tudo, mas não cumpre nada".

Para Nietzsche, as conseqüências deste falseamento conduzido por Paulo seriam posteriormente estendidas à própria História, uma vez que o cristianismo dele oriundo reivindicaria primeiro o passado judaico, e posteriormente toda a história pregressa da humanidade, como uma pré-história do cristianismo.
O filósofo neste ponto se omite de reconhecer que nossa percepção da História, como hoje a temos, surge justamente da necessidade de o pensamento cristão assentar-se em um contínuo temporal de eventos que se inicia na eternidade e se finda nela, da criação ao fim dos tempos.

É sobre este assentamento histórico que o cristianismo elevou a morte na cruz da condição de encerramento inglório de uma vida sem triunfo, para cumprimento de uma promessa feita no início dos tempos, o Messias judaico que triunfa na redenção e profetiza a vindoura glória eterna. Ou seja, passado, presente e futuro foram combinados para dar sentido a um acontecimento que dentro de sua contemporaneidade era completamente desprovido dele.

Este sentido histórico do cristianismo, segundo o filósofo, transferiu o centro de gravidade da vida, dela própria (o aqui, agora, o real, o instinto) para um além indefinido (no espaço, no tempo, na vontade) que na prática representa o mesmo que trocar a vida pelo nada.

É obviamente temeroso tratar um pensamento de ruptura com toda a tradição filosófica ocidental, como o é o pensamento de Nietzsche, em aventuras diletantes como este brevíssimo resumo. Assim como é temeroso mergulhar de cabeça em sua visão de mundo e correr o risco de se deixar seduzir pela transmutação de todos os valores que pregava, sem estar preparado para as terríveis conseqüências possíveis.

Mas não podemos deixar de louvar a coragem deste pensamento que ousou proclamar para uma civilização ocidental moldada pelas doutrinas de Paulo que no fundo só existiu um cristão, e ele morreu na cruz.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

O crente fundamentalista que encontrou um Deus legal

Da série cordel na web
Publicado originalmente m 25/9/2003 17:53:47

Por Acauan Guajajara

I – De como Severino viveu, se converteu e morreu

Severino era um cabra mais pior que encapetado
De tudo que era maldade ele já tinha praticado
No copo era imbatível, bebia por atacado
Brigava, jogava e mentia, assim vivia o condenado

Só era bem recebido pela tal madame Cristina
Com quem gastava tudo que ganhava na jogatina
Gabava-se que para ele três mulheres eram fichinha
No bordel fazia de tudo, menos beijar a bichinha

Mas sucedeu-se que um dia, ninguém sabe bem porque
Severino sumiu-se uns tempos, pra onde não sei dizer
Sentiram a falta dele no carteado e no métier
Onde anda o Severino? Quem podia responder?

Pro assombro da cidade, foi numa tarde de sábado
Que todo empertigado reaparece o mal falado
De livro em baixo do braço e dentro de um terno passado
Não podia ser Severino, devia ser seu copiado

Acercado de toda gente que queria explicação
Severino calmamente esperou a aproximação
Quando todo mundo à volta o olhava com atenção
Solta ele um grande grito: “ENCONTREI A SALVAÇÃO!”

O povo fez-se em silêncio, o encapetado abestalhou-se?
Não, dizia ele, da perdição o Senhor me trouxe
E hoje sou renascido, lavado no sangue da cruz
De agora em diante vivo para louvar o nome de Jesus

Devia ser brincadeira ou excesso de cachaça
Dizia o povo reunido lá no meio da praça
O Severino que antes sustentava a madame
Passava abaixo assinado para fecharem a casa infame

E foi assim por muitos anos, até que toda gente esqueceu
Do antigo Severino, que tanto trabalho deu
Ele era agora boa gente, apesar de muito chato
Só falava coisa de crente, era uma pedra no sapato

Um dia o Severino, adoeceu-se gravemente
E a cidade logo soube, que o passamento era iminente
Na igreja dele instalou-se oração e comoção
E até madame Cristina lamentou de coração

Severino já na espreita do terrível finalmente
Disse que era chegada hora, mas que partia contente
Ia ver seu salvador em sua hora mais urgente
Diante do qual então, se humilharia alegremente

Mal falou bateu a botas, abotoou o paletó
Foi pra terra dos pés juntos comer capim pela raiz
Mas conta-se a boca miúda que aqui não acaba o trolóló
O Severino após a morte se tornaria aprendiz

II – De como o crente Severino encontrou um Deus legal

Chegou Severino numa sala mais pra lá de bem modesta
Com uma mesinha e duas cadeiras, mas que porcaria é esta?
Se perguntava o falecido enquanto coçava a testa

Sente-se, não se aveche e se ponha confortável
Disse uma voz misteriosa de origem inescrutável
Severino então sentou e um rapaz veio recebê-lo
Oi, eu sou Deus, muito prazer em conhecê-lo

Tomado o susto do momento, o Severino calado
Se jogou de cara no chão, de joelhos prostrado
Deus olhou o cabra encolhido e disse com cara de enfado
Se levante e sente a bunda nesta cadeira ao seu lado

Meu senhor, eu te louvo, disse o Severino tremendo
Deus olhou meio de soslaio e disse: homem tome tento
Se aprume e me assunte, que o rapapé não tá a contento
Deixe de puxassaquismo e vamos ao que é o intento

Meu senhor, teu livro santo, de cabo a rabo já li
Deus já um tanto arretado, responde: não te entendi
Fiz sonetos e sinfonias, mas a Bíblia eu não escrevi
Por sinal nem gosto muito de algumas coisas ditas ali

Severino perturbado, com um Céu que não entende
Clama que o Salvador diga o que dele se pretende
Deus responde com a pergunta: O Dalí ou o Allende?

Diante do diferente de tudo que esperava
O remido jogador tenta a última cartada
Pede a Deus que o livre do inferno e que lhe conceda a graça
De graça nem almoço, disse Deus, sua proposta é negada

Um terror maior então tomou a face do crente,
Implorou para não ser jogado no lago de fogo inclemente
Mas porque eu faria isto, homem, que idéia mais desenxabida
Esta história de inferno é por demais descabida

Sem graça e sem inferno, sem Bíblia e sem Jesus,
Quedou-se triste Severino, como se carregasse uma cruz
Deus deu-lhe dois safanões, choradeira não me seduz
A eternidade é longa, e ela que te conduz
O infinito é grande, e é ele que te traduz
Severino, és um homem, no teu ser há luz

E foi assim que o Severino, um cabra bem diferente
Que foi jogador rufião e tornou-se fiel crente
Converteu-se ele de novo, agora em gente normal
Desistiu das armadilhas que arma a crença boçal
Porque descobriu Severino, que o seu Deus era legal.