sexta-feira, 24 de abril de 2009

O Abaetê que me Ensinou a Pescar

Por Acauan Guajajara

Publicado originalmente em 26/10/2007 às 22:39

Nascer do sol.
Nosso grupo reunido na praia ouve as palavras do abaetê que comanda a pescaria.

- Hoje, nós vamos matar peixes, diz.

Na época entendi a frase apenas como a previsão otimista de uma abundante e divertida pesca.
Minha primeira em mar aberto.

Demorou alguns anos para que eu entendesse que o abaetê nos alertava que o que iríamos tirar da água não eram brinquedos postos lá para nossa diversão, eram seres dotados de vida, às quais daríamos cabo ao realizar nosso propósito.
Demoraria mais alguns anos para que eu entendesse completamente o significado daquelas mortes.

Anos antes daquele nascer do sol, eu conhecera o abaetê.

Tinha ouvido falar de um velho Índio que ensinava música.Não primitivas fonias tribais, mas Bach, Liszt, Mozart e Villa Lobos, de quem fora aluno.
Um Índio ex-aluno de Heitor Villa Lobos, que lecionava música clássica, deveria ser objeto de curiosidade, mas não tanto para o jovem soldado, trabalhador e estudante, mais interessado em aprender os rudimentos da arte.

Levado por amigos a casa dele, onde ministrava as aulas, aguardei sua chegada na sala dos fundos, dominada pelo quadro negro com pentagrama musical em clave de Sol gravado.
Sentei-me na confortável poltrona posicionada no centro da sala e iniciei a leitura de um jornal deixado próximo.

Minha leitura foi interrompida por uma voz baixo profundo, conforme a própria me ensinaria mais tarde:

- Você está sentado na minha poltrona...
- Você está lendo meu jornal...
- E Você é... você é um Índio...

Hoje sei que deveria ter respondido "sou Acauan, e abaetê meu pai é cacique dos Tupis".
Mas meu caminho para tal resposta passava por aquele dia.

De volta à pescaria.
O abaetê prende os longos cabelos com uma bandana e se posiciona na popa do barco, lugar reservado para o melhor pescador.

- Estou no meu elemento, diz.

Eu tomo pílulas contra enjôo e avalio as condições de segurança da embarcação.
São duas longas horas mar adentro até chegar ao ponto de lançar âncora e iniciar a pescaria.

No caminho, ouço histórias nada animadoras sobre tempestades no mar, que avançavam rápido a ponto de exigir que se cortasse a corda da âncora ao invés de recolhê-la, com ondas que lavavam o convés, arrastando tudo que estava solto nele.Também não animava a detalhada descrição do estalar dos cavernames quando a embarcação desabava sobre a superfície do mar, após uma empinada de quase noventa graus.
Quando o barco para e o motor é desligado, resta o silêncio, a maresia e o balançar ritmado do mar alto.
Combinação desastrosa para os propensos que não se preveniam quimicamente contra o enjôo, como descobriria na minha segunda vez.

- O que importa é a luta. Diz o abaetê, que em seguida narra detalhadamente a pescaria anterior, quando se debatera por mais de hora contra uma arraia presa à sua linha, após ordenar o recolhimento de todas as dos demais, que se puseram na condição de expectadores do combate entre aquele determinado homem contra aquele determinado peixe.

A pesca se inicia.
Linhas e anzóis são distribuídos.
Neste tipo de pescaria não se usa vara, apenas linhadas.

O abaetê prepara seu anzol com bóia, lançado especificamente para capturar um tipo especial de peixe, a prejereba, presa marítima cobiçada pelo sabor da carne, pela dificuldade da captura e pela fúria da luta com que resistia até a exaustão. Costuma nadar próximo à superfície do mar, de onde a técnica de lançar anzóis com iscas especiais rentes a bóia.

Preparo minha linha e a enrolo em torno do meu dedo para melhor sentir as puxadas.

- Não faça isto, avisa o abaetê.

Ele me explica que com a linha enrolada daquela forma, meu dedo pode ser decepado caso um grande peixe a estique abruptamente com força.
Contou-me de uma vez em que um destes fez uma grossa linha de nylon soar nota Lá, como se fosse uma corda de violão.
Ainda me surpreendia com a capacidade do abaetê de identificar prontamente notas musicais nos sons do cotidiano.Certa vez me ensinara a afinar o instrumento a partir do som do sinal do telefone, segundo ele um Si bemol.

- Lá sustenido? Perguntei.

- Não, é um Si bemol, respondeu.
Sem que eu jamais descobrisse a diferença entre os dois sons que, conforme a teoria musical dos meio-tons, deveriam ser o mesmo.

Desfaço as voltas da linha em torno do dedo e passo a segurá-la tocando de leve com a ponta do indicador, apenas o suficiente para sentir seu movimento.

A correnteza é forte e dá a impressão de que sempre há um peixe puxando a linha, hipótese sempre desmentida cada uma das várias vezes em que recolhia o anzol apenas para constatar que a isca permanecia intacta nele.

Esta ação se repete ao longo de toda manhã, mudando apenas a condição da isca, em algumas vezes comida por um peixe mais esperto que o pescador, no caso, eu.

Enquanto isto, o abaetê lota o barco de cações, fisgados um após o outro com uma facilidade que sugere que se valha de algum aparato secreto que escondeu de nós ou recorra a alguma antiga feitiçaria indígena que nunca me foi ensinada.

A cada peixe fisgado o abaetê canta alto frases em Tupi antigo, festejando a vitória.
Mesmo assim, ele não está satisfeito. Quer a prejereba.

E então, sem mais, ele aponta o céu.

- Albatrozes.

Os demais entendem apenas como um chamado a apreciação daqueles pássaros notáveis, que pairam sobre o mar com nobreza tal que sugere terem sido postos lá pelo próprio Netuno.

Lembrei-me de uma conversa de mesa de bar, entre cervejas e histórias, quando falei de meus acampamentos, de o quanto após um dia de aventuras e empreitadas eu gostava de me sentar na praia para admirar o vôo dos albatrozes e seus mergulhos para apanhar peixes que só eles sabiam localizar no fundo d'água, do majestoso alto de onde partiam.

- Leviatã do espaço, albatroz, albatroz, dá-me estas asas. Recitou o abaetê.

- Castro Alves, disse, reconhecendo o verso.

Seguiu-se um rápido dueto em que ele iniciava uma estrofe de "Navio Negreiro" e me incentivava a completá-la.

Após três ou quatro rodadas deste jogral, me rendi declarando não lembrar a continuidade do trecho iniciado por ele.

O abaetê me olhou com uma mistura de incentivo e censura, que mais tarde entendi que se tratava de uma lição importante - se algo vale a pena ser aprendido, não a aprenda pela metade, como me mostrou ao demonstrar conhecer o poema da primeira à última palavra.

Meu devaneio sobre albatrozes e conversas passadas é subitamente interrompido por um forte puxão na linha que toco com a ponta do dedo.

O momento chegara.

- Peguei um, grito.

- Confirme a fisgada, diz o abaetê.

Seguro firmemente a linha e dou-lhe um forte puxão, um tranco. O objetivo é fazer com que o anzol crave firme na carne do animal e impeça sua fuga durante a puxada.

Puxo a linha com entusiasmo.

Meu primeiro peixe oceânico.
Que não seja uma espada, gênero desprezado pelos pescadores experientes, pela facilidade com que se dá ao anzol.

Quando a superfície do mar se agita na ponta da linhada contemplo meu prêmio.
Um cação.
Minha primeira presa era um pequeno tubarão.

Termino de puxá-lo para dentro do barco e o seguro a uma distância segura, temendo os dentes serrilhados do peixe que brandia suas mandíbulas no seu debate final.

- Você está com medo de um peixe morto?

A voz do abaetê interrompe meu breve momento de vitória.

- Mate! Completa.

O abaetê me olha duramente enquanto me oferece o bastão de madeira com o qual devo esmagar o crânio do tubarãozinho.
É o procedimento de rotina.
Uma espada possui dentes longos e afiados como navalhas. Se largada viva no convés pode facilmente rasgar a pele de um pescador distraído antes de morrer, por isto os peixes devem ser cacetados antes de dispostos.

Faço o que tinha que fazer e encerro a história daquele representante de uma espécie que cruza os mares há dezenas de milhões de anos.

Não me choco.
Sou um Tupi.
O animal lutou e encontrou a morte em combate honrado.
Desde criança fui ensinado a não sentir pena do animal abatido.
O último sentimento que deveríamos dirigir ao animal que nos alimentaria era respeito e não piedade.

Tudo me era perfeitamente claro.
Eu tirara aquele peixe do mar.
Seria indigno lançá-lo a um canto do barco para que asfixiasse até a morte, como se fosse um pedaço de lixo.

Ele devia morrer pelas minhas mãos em um ato ritual em que eu o olharia diretamente em seu último momento de vida.
Depois comeria sua carne e o peixe que matei se tornaria parte de meu corpo.

No passado, meus ancestrais faziam isto com seres humanos.

O abaetê me olha satisfeito.
Sua missão fora cumprida.

Eu aprendera naquelas horas em mar alto tanto quanto nas leituras dos livros de Platão que o abaetê me emprestara.
Nunca esqueci o destaque que deu a uma citação de "A República".

- No mundo sensível, o BEM engendrou um filho, o Sol.

Olho indiretamente o sol que caminha para o poente sobre o mar.
Olho o abaetê, comemorando o triunfo de uma pescaria farta, coroada pela prejereba içada após luta ferrenha.

Levanta-se a âncora.
O barco parte de volta à costa.

Mais tarde o abaetê me ensinaria como tirar o couro do cação com a faca e o melhor modo de remover suas vísceras, deixando claro, sem dizer, que eu deveria fazer isto.

Gaivotas sobrevoam o barco, atraídas pelo cheiro dos peixes.

Posiciono-me na proa e observo os reflexos do sol no mar.

Um albatroz mergulha.

Um gavião caminha.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Quadrilogia Tupi IV - A Alvorada de um Guerreiro

Por Acauan Guajajara

Publicado originalmente em Janeiro de 2004

Noite.Caminho com meu filho por uma trilha na mata.A certa altura o curumim se interessa por uma grande e velha árvore que avista trilha adentro, parcialmente oculta na escuridão.

- Vamos até lá? Pergunta ele.

- Por que não vai sozinho. Eu te espero aqui.

- Eu não. Responde o menino, surpreso com minha proposta.

- Por que não?

- É noite..., está escuro.., é longe.

- Então ande até o mais próximo que quiser da árvore e volte. Estarei aqui olhando.

Meu filho avançou trilha adentro até mais ou menos um terço da distância que nos separava da árvore e voltou. Olhou para mim, recebeu um sorriso de aprovação e retornamos.

Nas noites seguintes repetimos o feito, sendo que a cada vez ele avançava mais mata adentro, se aproximava um pouco mais de seu objetivo e voltava orgulhoso do novo trecho conquistado.

E então, na última noite ele caminhou sozinho até a velha árvore pela trilha escura e voltou, excitante por tem vencido o desafio ao qual se propôs.

Pouso minha mão no ombro dele e pergunto:

- Você antes tinha medo de caminhar até a árvore. Agora não tem mais. Por quê?

- Não sei...

Então eu lhe falei dos antigos Tupis e de como prezavam a coragem. E de um rio que cruzei a cavalo quando tinha a idade dele.

Quadrilogia Tupi III - ABAETÊ

Por Acauan Guajajara

Publicado originalmente em Janeiro 2003

No último rito anual que fiz com meus filhos na mata, quando rememoramos nossas tradições ancestrais, eu falei a eles sobre meu pai, falecido antes que nascessem.

Disse-lhes que ele foi um valoroso guerreiro, um grande abaetê (homem honrado) e um sábio cacique.

Meu filho mais velho, de oito anos, ouviu a história com atenção enquanto eu notava que a tristeza tomava o seu semblante.

- O que foi, meu filho? Perguntei.

- Por que todo mundo tem que morrer? Disse ele, me dando por resposta a mais solene das perguntas.

O olhar do curumim buscou os meus olhos, certo de que no pai encontraria todas as respostas. Naquele momento, eu não poderia falhar.

- A natureza é feita de tempos filho. Disse ao curumim.

- Como assim?

- O tempo de meu pai é passado, um dia será passado o meu e ao seu tempo sucederá o do seu filho. Respondi.

Minha explicação não tirara de seus olhos a expressão triste. Então prossegui.

- Meu pai vive em meu coração. Agora que lhe falei sobre ele, um dia, meu pai e eu viveremos no teu. Fale de nós ao teu filho, e um dia, nós três, seu avô, eu e você, viveremos no coração dele.

Meu filho olhou para mim, seus olhos brilharam numa lágrima. Ele havia entendido. O pequeno curumim um dia será um valoroso guerreiro, um grande abaetê e um sábio cacique.

E eu viverei no coração dele.

Quadrilogia Tupi II - Elegia em Prosa a um Cacique

Por Acauan Guajajara

Publicado originalmente em 30/7/2004 22:17:14

Quando eu tinha dez anos, visitei as terras ancestrais de meu pai e de meu povo.

Não era a primeira vez. Na anterior eu havia conhecido o gavião que me dera nome e título, mas esta é uma outra história.

Esta começa a beira de um rio caudaloso, de forte correnteza, onde um menino montado num cavalo recebe as instruções de dois membros do clã sobre como atravessá-lo.Alertam-me que a correnteza provoca tonturas e me orientam para que eu fixe o ponto de saída na outra margem e conduza firmemente o animal sempre naquela direção.

Cheio de temor e empolgação iniciei a travessia, exultante ante a idéia de vencer tal desafio sozinho, mesmo acreditando que se caísse do cavalo certamente morreria afogado, dadas a profundidade e a correnteza do rio.

O tempo do percurso deve ter sido de pouco minutos, mas para mim pareceu infinitamente maior, tal era a tensão com que manobrava as rédeas, temendo cometer um erro potencialmente fatal.

Não sei quantos de vocês já passaram por experiência semelhante.O burburinho do rio lhes enche os ouvidos de tal forma que não se consegue ouvir outra coisa, enquanto a correnteza produz a ilusão de que a margem de destino desliza móvel ante seus olhos, como a plataforma da estação passa diante dos que ocupam o vagão de um trem que parte.

Medo e vontade de vencer o desafio se alternavam em mim.

Quando cheguei exultante à outra margem, meus dois acompanhantes se limitaram a me olhar satisfeitos e dizer:

- Seu pai cruzava este rio a nado.

Depois daquele evento, notei que todas as vezes que me apresentavam a alguém, diziam não mais apenas este é Acauan, como sempre fizeram. Passaram a dizer este é Acauan, filho de ..., e diziam o nome de abaetê meu Pai.

Anos depois, passei a lembrar daquele dia com estranheza. Como adultos responsáveis deixaram uma criança correr risco de vida naquela travessia?

Foi preciso mais algum tempo para que eu soubesse o que de fato ocorrera.O cavalo que eu montava era habituado a cruzar o rio naquele ponto e o atravessaria com segurança, quer eu o conduzisse corretamente ou não.Os dois acompanhantes se posicionaram em cada um dos meus lados, atentos a me socorrer ao primeiro pedido de socorro ou a se lançarem a água caso eu caísse.

Eu estava absolutamente seguro.

Sem saber, passara por um ritual de coragem, reservado aos filhos homens dos abaetês caciques.

Muito se havia perdido.
Nossa língua morreu.
Nossa identidade guerreira morreu.
Nossa cultura ancestral morreu.

Ou quase.Algo sobreviveu.

A idéia de que o filho de um grande cacique devia ter sua coragem testada, para se fazer digno de ser quem era.

Naquele dia nasceu ACAUAN DOS TUPIS.

Honra e glória à memória de abaetê meu Pai. Valoroso guerreiro, cacique dos Tupis.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Quadrilogia Tupi I - O Gavião que Caminha

Por Acauan Guajajara

Publicado originalmente em 3/1/2005 17:10:50

Acauan criança caminha pela trilha na mata, aberta por seus ancestrais.

Nascido e criado na cidade dos brancos, o pequeno Tupi se maravilha com a beleza dos imponentes bambuzais que margeiam a trilha, plantados por seu pai, abaetê e cacique.

À margem do riacho, Acauan avista três gaviões pousados no topo de um bambuzal.

Acauan olha os gaviões.

Os gaviões, altivos, ignoram Acauan.

Acauan não sabe por quanto tempo ficou olhando os gaviões.
Nem sabe que os caminhos da vida o levarão para muito além da trilha dos Tupis.

Mas de uma coisa Acauan sabe.

Os gaviões o acompanhariam por toda a vida.

Acauan caminha.