Por Acauan Guajajara
1. Ascensoristas
A
última vez que vi um ascensorista em São Paulo ele usava calças boca de sino e
estava trajado na última moda.
Ao
reencontrar no Rio espécimes vivos desta profissão presumidamente extinta tive
impulsos de fotografar e encaminhar a descoberta aos museus antropológicos.
Entro
no elevador de um prédio moderno que abriga um Centro de Convenções com vista
para a Baía.
Uma
senhora uniformizada posicionada no canto deixa claro que não devo selecionar
meu andar apertando o botão com seu respectivo número. Preciso cumprir o
protocolo de cumprimentar, solicitar, agradecer e despedir. Seria mais fácil e
rápido apertar o botão.
A
cena se repete algumas vezes.
Na
última, sou o único passageiro. De
repente o silêncio protocolar entre a solicitação e o agradecimento é rompido
quando a ascensorista começa a entoar entusiasmadamente um hino evangélico em
alto e não tão bom som.
O
trajeto vertical de dezoito andares se torna terrivelmente longo.
Cogito
se o recital Gospel foi motivado por intervenção do Espírito Santo ou se porque
aparento apreciar este tipo de espetáculo.
Espero que tenha sido por intervenção do Espírito Santo.
Em
um Hotel do Centro do Rio que viveu seus tempos de glória em outra era, o
ascensorista ostentando um modelo de uniforme dos anos trinta comanda um
elevador aparentemente fabricado décadas antes.
A
cena sugere um paradoxo temporal.
Visto por um aspecto o ascensorista e seus botões brilhantes conduzem um equipamento acionado por alavanca e cujas portas e grade são abertas e fechadas manualmente. E cada vez que ele abria a porta eu ficava na expectativa se Johnny Alf ou Dick Farney entrariam por ela.
Visto
por outro, a alavanca de comando, os ruídos do sistema mecânico e as luzes dos
andares piscando através da grade lembravam o turbolift da USS
Enterprise.
2. Suburbanos
A
população do Rio se divide em quatro nações: Zona Sul, Zona Norte, Morros e
Subúrbio. Dizem que existe uma Zona Oeste, mas acredito que seja lenda urbana
As
nações falam o mesmo idioma com diferentes dialetos e sotaques, distinguindo-se
uma das outras pela localização geográfica e comportamento.
O
território neutro é a praia, que as quatro nações dividem democraticamente, com
variados graus de apreciação desta democracia.
Fora
da areia vivem um tipo de Paz Armada na qual as quatro nações se hostilizam
entre si e o único consenso é que as populações da Zona Sul, Zona Norte e
Morros não gostam dos suburbanos.
Tentei
ouvir a versão de um suburbano, mas no Rio ninguém admite sê-lo.
Voltando
de Bonsucesso (um lugar que deveria ser uma lenda urbana, mas infelizmente não
é) o taxista me tira uma dúvida histórica sobre quem seriam e onde viveriam os
tais suburbanos. Explicou alguma coisa a
ver com as linhas de trens.
Não
sei se entendi bem como os trilhos definem um padrão sócio-cultural que sucinta
tanta rejeição, mas talvez certos aspectos do Rio sejam incompreensíveis para
os paulistas.
3. O Garçom
Um
tipo que Rio e São Paulo têm em comum é o Garçom à Moda Antiga.
O
Garçom à Moda Antiga não é uma pessoa. É
uma instituição.
Esta
nobre estirpe pode ser identificada pelo paletó branco com gravata borboleta, a
postura impecavelmente ereta, a elegância dos movimentos e gestos e a cortesia hospitaleira.
Sou
recebido e servido por um destes em um restaurante sem credenciais do Centro.
Comer
fora de casa espeta nosso inconsciente coletivo e nos retorna àqueles medos
tribais de que enquanto comemos estamos desatentos e indefesos perante sabe-se
lá quais ameaças que nos espreitam da floresta ou pela vidraça. A fina arte do
Garçom à Moda Antiga é a de nos fazer sentir em casa durante a refeição, acalmando
nossos antigos instintos tribais, que no meu caso em particular nem são tão
antigos assim.
Observo
o Garçom que me atende enquanto leva um prato com uma refeição quente para o
guardador de carros que marca ponto na rua sem saída onde fica o
restaurante. O homem que pede para olhar
carros sob a chuva fina e fria da noite na esperança de receber trocados tem
seu jantar grátis servido pelo Garçom à Moda Antiga com a mesma cortesia dirigida
aos clientes pagantes, acompanhado de uma rápida conversa, atenciosa e
amistosa.
Como
disse, uma nobre estirpe.
4. Taxistas
Taxistas...
Um deles foi o que me correlacionou suburbanos e trens.
Não
lembro se antes ou depois de me contar que era graduado, pós-graduado, falava
duas línguas e se sentia plenamente realizado – espiritual e financeiramente – sendo
motorista de táxi.
Até
aí tudo bem, seria uma parte da vida dele até interessante de se saber.
O
problema é que no caminho ficamos retidos no congestionamento e ele me contou
todas as partes restantes da vida dele.
Exagero meu. Ele não falou sobre
o período do zero aos três anos, do qual pouco se lembra.
Como
não bastasse me pôr de posse de material suficiente para que eu escrevesse sua
biografia autorizada, nos lentos e longos quilômetros que separam Bonsucesso
(aquele) do hotel (o do elevador velho) meu condutor me ilumina com sua visão
de mundo, o que incluiu teoria moral, teoria política, solução para os
problemas brasileiros – todos -, análise autocrítica sobre os motoristas de
táxi do Rio, entendendo-se por análise autocrítica uma explanação sobre os
outros motoristas não serem tão honestos quanto ele próprio e..., claro, seus
sucessos românticos e sexuais, que culminaram em uma narrativa sobre como
conquistou uma linda prostituta tratando-a como se não o fosse.
Respondo
com frases cientificamente escolhidas, cujo principal conteúdo é a sugestão
subliminar e neurolinguística de que ele parasse de falar.
Nesta
instrutiva viagem aprendi que Neurolinguística não serve prá porra nenhuma.
Outro
taxista.
Vem
me pegar no hotel. Ainda traumatizado
pela corrida veicular e verbal da noite anterior, eu o cumprimento e me preparo
para acrescentar a vida e as brilhantes ideias dele ao arquivo da memória onde
jazem as de seu colega.
Ele
responde ao bom dia com um quase imperceptível aceno de cabeça.
Um
inesperado e sepulcral silêncio nos acompanha por toda a viagem.
Dou
uma rápida examinada no motorista, que se parece muito com o Sargento Garcia em
dia de depressão profunda.
A
certa altura a combinação de atitude misteriosa e aparência denunciante me faz
temer que aquele fosse um falso taxista, que estaria me sequestrando com
objetivo de me usar como escudo humano contra os Minutemen em sua
tentativa de cruzar ilegalmente o Rio Grande rumo a El Paso.
Mas
ele me deixa em Bonsucesso, tão sinistramente calado quanto me recebeu. E depois deve ter seguido para a fronteira do
México.
5. O Guardador de
Carros
Aquele
do restaurante sem credenciais onde trabalha o Garçom à Moda Antiga.
O
sujeito é baixinho, de meia idade e passaria despercebido não fosse sua tintura
de cabelo loiro-alaranjado anunciar sua presença de modo impossível de ignorar.
Ele
vai e volta pela calçada em frente ao restaurante, mantendo uma expressão
preocupada e um olhar vigilante sobre carros cujos donos estão sentados a poucos
metros e podem enxergá-los pela vidraça.
Usa
uma daquelas capas plásticas vendidas em estádios para se proteger da chuva –
aquela fria e fina, que eu devo ter trazido de São Paulo para o Rio por algum
engano.
Quando
o Garçom lhe traz a comida o Guardador conta a ele sobre suas filhas. Diz que estão muito bem de vida, que moram em
casões e que ficava com vergonha diante delas.
O
Garçom pergunta sobre a vergonha, com um tom de voz que não expressava censura
ou julgamento.
A
conversa é interrompida por um cliente de saída, que dá um dinheiro maior que o
esperado ao Guardador, acompanhado de comentários lançados em tom de
brincadeira sobre ele não merecer aquele dinheiro, seguidos de recomendações
para que cortasse o cabelo, parasse de pintá-lo e arranjasse emprego.
Endosso
a sugestão para que abandonasse aquela cor capilar. As demais me pareceram grosseiramente
desnecessárias. Percebo que a nota recebida custou mais caro ao Guardador do
que o esforço para se fingir vigilante.
Fico
sem saber se as filhas ricas eram reais ou uma daquelas fantasias que pessoas
nesta condição acreditam que as farão ser vistas com algum respeito. Ou que
caminhos da vida o levaram àquele beco.
Do
meu ponto de vista, se parasse de chover a vida do Guardador já melhoraria.
Fiz
minha parte voltando para São Paulo no dia seguinte.