quinta-feira, 17 de maio de 2012

Tipos Cariocas - de Os Diários de um Índio Viajante



Por Acauan Guajajara

1. Ascensoristas

A última vez que vi um ascensorista em São Paulo ele usava calças boca de sino e estava trajado na última moda.
Ao reencontrar no Rio espécimes vivos desta profissão presumidamente extinta tive impulsos de fotografar e encaminhar a descoberta aos museus antropológicos.

Entro no elevador de um prédio moderno que abriga um Centro de Convenções com vista para a Baía.
Uma senhora uniformizada posicionada no canto deixa claro que não devo selecionar meu andar apertando o botão com seu respectivo número. Preciso cumprir o protocolo de cumprimentar, solicitar, agradecer e despedir. Seria mais fácil e rápido apertar o botão.
A cena se repete algumas vezes.
Na última, sou o único passageiro.  De repente o silêncio protocolar entre a solicitação e o agradecimento é rompido quando a ascensorista começa a entoar entusiasmadamente um hino evangélico em alto e não tão bom som.
O trajeto vertical de dezoito andares se torna terrivelmente longo.
Cogito se o recital Gospel foi motivado por intervenção do Espírito Santo ou se porque aparento apreciar este tipo de espetáculo.  Espero que tenha sido por intervenção do Espírito Santo.

Em um Hotel do Centro do Rio que viveu seus tempos de glória em outra era, o ascensorista ostentando um modelo de uniforme dos anos trinta comanda um elevador aparentemente fabricado décadas antes.

A cena sugere um paradoxo temporal.

Visto por um aspecto o ascensorista e seus botões brilhantes conduzem um equipamento acionado por alavanca e cujas portas e grade são abertas e fechadas manualmente.  E cada vez que ele abria a porta eu ficava na expectativa se Johnny Alf ou Dick Farney entrariam por ela.


Visto por outro, a alavanca de comando, os ruídos do sistema mecânico e as luzes dos andares piscando através da grade lembravam o turbolift da USS Enterprise.

2. Suburbanos

A população do Rio se divide em quatro nações: Zona Sul, Zona Norte, Morros e Subúrbio. Dizem que existe uma Zona Oeste, mas acredito que seja lenda urbana
As nações falam o mesmo idioma com diferentes dialetos e sotaques, distinguindo-se uma das outras pela localização geográfica e comportamento.
O território neutro é a praia, que as quatro nações dividem democraticamente, com variados graus de apreciação desta democracia.
Fora da areia vivem um tipo de Paz Armada na qual as quatro nações se hostilizam entre si e o único consenso é que as populações da Zona Sul, Zona Norte e Morros não gostam dos suburbanos.
Tentei ouvir a versão de um suburbano, mas no Rio ninguém admite sê-lo.
Voltando de Bonsucesso (um lugar que deveria ser uma lenda urbana, mas infelizmente não é) o taxista me tira uma dúvida histórica sobre quem seriam e onde viveriam os tais suburbanos.  Explicou alguma coisa a ver com as linhas de trens.
Não sei se entendi bem como os trilhos definem um padrão sócio-cultural que sucinta tanta rejeição, mas talvez certos aspectos do Rio sejam incompreensíveis para os paulistas.

3. O Garçom

Um tipo que Rio e São Paulo têm em comum é o Garçom à Moda Antiga.
O Garçom à Moda Antiga não é uma pessoa.  É uma instituição.
Esta nobre estirpe pode ser identificada pelo paletó branco com gravata borboleta, a postura impecavelmente ereta, a elegância dos movimentos e gestos e a cortesia hospitaleira.
Sou recebido e servido por um destes em um restaurante sem credenciais do Centro.
Comer fora de casa espeta nosso inconsciente coletivo e nos retorna àqueles medos tribais de que enquanto comemos estamos desatentos e indefesos perante sabe-se lá quais ameaças que nos espreitam da floresta ou pela vidraça. A fina arte do Garçom à Moda Antiga é a de nos fazer sentir em casa durante a refeição, acalmando nossos antigos instintos tribais, que no meu caso em particular nem são tão antigos assim.
Observo o Garçom que me atende enquanto leva um prato com uma refeição quente para o guardador de carros que marca ponto na rua sem saída onde fica o restaurante.  O homem que pede para olhar carros sob a chuva fina e fria da noite na esperança de receber trocados tem seu jantar grátis servido pelo Garçom à Moda Antiga com a mesma cortesia dirigida aos clientes pagantes, acompanhado de uma rápida conversa, atenciosa e amistosa.
Como disse, uma nobre estirpe.

4. Taxistas

Taxistas... Um deles foi o que me correlacionou suburbanos e trens.
Não lembro se antes ou depois de me contar que era graduado, pós-graduado, falava duas línguas e se sentia plenamente realizado – espiritual e financeiramente – sendo motorista de táxi.
Até aí tudo bem, seria uma parte da vida dele até interessante de se saber.
O problema é que no caminho ficamos retidos no congestionamento e ele me contou todas as partes restantes da vida dele.  Exagero meu.  Ele não falou sobre o período do zero aos três anos, do qual pouco se lembra.
Como não bastasse me pôr de posse de material suficiente para que eu escrevesse sua biografia autorizada, nos lentos e longos quilômetros que separam Bonsucesso (aquele) do hotel (o do elevador velho) meu condutor me ilumina com sua visão de mundo, o que incluiu teoria moral, teoria política, solução para os problemas brasileiros – todos -, análise autocrítica sobre os motoristas de táxi do Rio, entendendo-se por análise autocrítica uma explanação sobre os outros motoristas não serem tão honestos quanto ele próprio e..., claro, seus sucessos românticos e sexuais, que culminaram em uma narrativa sobre como conquistou uma linda prostituta tratando-a como se não o fosse.
Respondo com frases cientificamente escolhidas, cujo principal conteúdo é a sugestão subliminar e neurolinguística de que ele parasse de falar.
Nesta instrutiva viagem aprendi que Neurolinguística não serve prá porra nenhuma.

Outro taxista.
Vem me pegar no hotel.  Ainda traumatizado pela corrida veicular e verbal da noite anterior, eu o cumprimento e me preparo para acrescentar a vida e as brilhantes ideias dele ao arquivo da memória onde jazem as de seu colega.
Ele responde ao bom dia com um quase imperceptível aceno de cabeça.
Um inesperado e sepulcral silêncio nos acompanha por toda a viagem.
Dou uma rápida examinada no motorista, que se parece muito com o Sargento Garcia em dia de depressão profunda.
A certa altura a combinação de atitude misteriosa e aparência denunciante me faz temer que aquele fosse um falso taxista, que estaria me sequestrando com objetivo de me usar como escudo humano contra os Minutemen em sua tentativa de cruzar ilegalmente o Rio Grande rumo a El Paso.
Mas ele me deixa em Bonsucesso, tão sinistramente calado quanto me recebeu.  E depois deve ter seguido para a fronteira do México.

5. O Guardador de Carros

Aquele do restaurante sem credenciais onde trabalha o Garçom à Moda Antiga.
O sujeito é baixinho, de meia idade e passaria despercebido não fosse sua tintura de cabelo loiro-alaranjado anunciar sua presença de modo impossível de ignorar.

Ele vai e volta pela calçada em frente ao restaurante, mantendo uma expressão preocupada e um olhar vigilante sobre carros cujos donos estão sentados a poucos metros e podem enxergá-los pela vidraça.

Usa uma daquelas capas plásticas vendidas em estádios para se proteger da chuva – aquela fria e fina, que eu devo ter trazido de São Paulo para o Rio por algum engano.

Quando o Garçom lhe traz a comida o Guardador conta a ele sobre suas filhas.  Diz que estão muito bem de vida, que moram em casões e que ficava com vergonha diante delas.
O Garçom pergunta sobre a vergonha, com um tom de voz que não expressava censura ou julgamento.
A conversa é interrompida por um cliente de saída, que dá um dinheiro maior que o esperado ao Guardador, acompanhado de comentários lançados em tom de brincadeira sobre ele não merecer aquele dinheiro, seguidos de recomendações para que cortasse o cabelo, parasse de pintá-lo e arranjasse emprego.
Endosso a sugestão para que abandonasse aquela cor capilar.  As demais me pareceram grosseiramente desnecessárias. Percebo que a nota recebida custou mais caro ao Guardador do que o esforço para se fingir vigilante.

Fico sem saber se as filhas ricas eram reais ou uma daquelas fantasias que pessoas nesta condição acreditam que as farão ser vistas com algum respeito. Ou que caminhos da vida o levaram àquele beco.
Do meu ponto de vista, se parasse de chover a vida do Guardador já melhoraria.
Fiz minha parte voltando para São Paulo no dia seguinte.