segunda-feira, 7 de março de 2011

Os Espíritos da Mata

Por Acauan Guajajara

Publicado originalmente em 07/03/2011 às 13:56

Antes do Código, os Homens e os Espíritos da Mata viviam em guerra.
Os Homens, feitos de matéria pesada, caminhavam sobre a terra e podiam viver sob a luz do dia.
Os Espíritos da Mata eram feitos de matéria leve. À noite os Espíritos da Mata vagavam entre o chão e as copas das árvores mais altas.
Durante o dia os Espíritos da Mata repousavam no corpo dos animais da floresta.

Como eram feitos de matéria leve, os Espíritos da Mata não podiam ferir os Homens. Os Homens não podiam matar os Espíritos da Mata, pois eles não morrem.

Os Homens combatiam os Espíritos da Mata durante o dia, matando os animais da floresta e abandonando suas carcaças ao sol, para que os Espíritos da Mata ficassem presos nos corpos mortos até que fossem totalmente consumidos.
Quando o sol desaparecia, os Espíritos da Mata deixavam os corpos dos animais, rumavam para o lugar onde os Homens dormiam, se misturavam aos humores e fumos noturnos que os homens respiravam e os envenenavam com a febre que matava ou enfraquecia os Homens.

A guerra durava gerações.
Um dia, jovens da tribo se revoltaram contra os anciãos que comandavam os Homens. Propunham que para vencer os Espíritos da Mata deviam entrar na floresta, matar todos os animais e queimar todas as árvores, assim os Espíritos da Mata não teriam onde se abrigar da luz do dia e sem a copa das árvores altas para lhes servir de teto se perderiam entre as estrelas.

O mais forte dos jovens rebeldes dizia que os Espíritos da Mata eram Aqueles que Não Morrem. Como os Homens morrem, era preciso queimar a floresta e matar os animais para derrotar os Espíritos da Mata, antes que eles exterminassem os Homens com a febre.

Temendo os jovens, os anciãos procuraram Mayra.
Desde o princípio Mayra dizia aos anciãos que a guerra entre os Homens e os Espíritos da Mata devia terminar.
Os anciãos morriam e os jovens se tornavam anciãos sem que o conselho de Mayra fosse acatado.

Mayra ouviu os anciãos e perguntou a eles se os Homens queriam dormir a noite sem temer o ataque dos Espíritos da Mata.
Os anciãos entenderam que Mayra queria terminar a guerra e responderam que fariam o que Mayra lhes dissesse para fazer.

Mayra disse aos anciãos que demarcassem na floresta um grande círculo, que derrubassem as árvores dentro do círculo, mas nenhuma fora dela, que marcassem o ponto onde o sol nasce e o ponto onde o sol se põe e fizessem uma linha que unisse os dois pontos. Que dividissem o círculo em oito partes iguais e que, partindo do centro do círculo, das linhas de cada uma das oito partes traçassem trilhas na floresta. Nestas trilhas derrubariam as árvores para abrir um caminho no qual passasse dois Homens lado a lado. E quando o círculo e as trilhas estivessem prontos, que erguessem ocas alinhadas ao longo do círculo, habitassem as ocas e deixassem a floresta para ser habitada pelos Espíritos da Mata.

Os anciãos fizeram conforme as palavras de Mayra.
Os jovens derrubaram as árvores para fazer o círculo e a trilha, acreditando estar fazendo a guerra contra os Espíritos da Mata.

Quando o círculo, as trilhas e as ocas ficaram prontas, Mayra procurou os Espíritos da Mata.
Os Espíritos da Mata não falavam a língua dos Homens, mas Mayra falava a língua deles.
Por toda a noite Mayra e os Espíritos da Mata conversaram sobre a guerra.
Quando amanheceu, os Espíritos da Mata foram para o repouso e Mayra voltou e reuniu os anciãos na oca maior.

Mayra disse aos anciãos que a guerra entre os Homens e os Espíritos da Mata estava terminada.
Durante o dia os Homens caminhariam sobre a terra e sob a luz. Matariam apenas os animais que precisassem para comer e comeriam toda a carne de cada animal que matassem.
À noite a floresta pertenceria aos Espíritos da Mata e os Homens se manteriam dentro do círculo e das trilhas.
Mesmo nas noites sem lua, os Espíritos da Mata não invadiriam o círculo nem qualquer das trilhas onde os Homens dormissem ou caminhassem.

Mayra também advertiu os anciãos. Disse que instruíssem os Homens para cumprirem o acordo, caso contrário os Espíritos da Mata caminhariam sobre a terra, como os Homens.

Os anciãos reuniram os Homens e disseram que a guerra com os Espíritos da Mata havia terminado, mas por orgulho assumiram a honra para si próprios, não contaram que fora Mayra quem fez o acordo que terminou a guerra.

Então os anciãos disseram aos jovens que os obedecessem ou sua magia, que fora poderosa para silenciar os Espíritos da Mata, se voltaria contra os desobedientes.
Os jovens temeram a ameaça dos anciãos e obedeceram quando ordenaram que só matassem animais para comer, comessem os que matassem e só caminhassem na mata à noite pelas trilhas, omitindo que fora Mayra quem lhes ensinara a fazer assim.

Um dia, o mais forte dos jovens, aquele que queria queimar a floresta para derrotar os Espíritos da Mata, reuniu outros jovens e os convenceu que os Espíritos da Mata cederam por medo de suas ameaças e não pela magia dos anciãos.
Para provar o que dizia, esperou uma noite sem lua, reuniu os jovens que o seguiam e caminhou com eles por uma das trilhas. No coração da mata, abandonou a trilha e adentrou sozinho na floresta, onde atirou ao chão a carcaça de animal que matara e não comera, em desafio aos Espíritos da Mata.

Os Espíritos da Mata viram que os Homens traíram o acordo e sabiam que os anciãos traíram Mayra. Porém deixaram o jovem rebelde entrar e sair da floresta sem molestá-lo, pois os Espíritos da Mata tinham seus ardis.

Quando o jovem rebelde voltou ileso do coração da mata, os demais concordaram que não mais obedeceriam aos anciãos, que eram fracos e mentirosos. Entrariam no grande círculo, matariam os anciãos e os fortes comandariam os Homens.

Os Espíritos da Mata sentiram as intenções dos jovens e os seguiram. Como os Homens traíram o acordo, podiam agora entrar nas trilhas e no grande círculo. Quando chegasse a hora, caminhariam sobre a terra como os Homens e os matariam. Não mais com os humores e fumos causadores da febre, mas com a força da matéria pesada.

Quando os jovens se aproximaram do grande círculo, os anciãos os esperavam para puni-los por sua desobediência, sem imaginar que os jovens pretendiam matá-los.

Só Mayra viu a cena completa, pois podia ver o que os Homens não viam.
Mayra viu que os anciãos confiavam que os jovens ainda temiam a magia deles, viu que os jovens queriam matar os anciãos para comandar os Homens e viu que os Espíritos da Mata seguiam os jovens para – depois que os Homens se matassem entre si – matar aqueles que sobrassem.

Quando os anciãos, os jovens e os Espíritos da Mata se encontraram na entrada do grande círculo, Mayra surgiu entre eles.

Todos temeram Mayra, pois cada um, a seu modo, havia traído o acordo.

Por um momento os anciãos, os jovens e os Espíritos da Mata ficaram imóveis sob o olhar de Mayra.
Então, num movimento súbito e sem dizer palavra, o mais forte dos jovens ergueu sua clava e golpeou pesadamente a cabeça de Mayra.
O jovem soltou um grito selvagem enquanto o corpo de Mayra caía ao chão, com o crânio fendido.

Os Espíritos da Mata circundaram o corpo de Mayra e viram nele que era chegado seu tempo de caminhar sobre a terra e destruir os Homens.
E da escuridão que emanou da ausência de Mayra, os Espíritos da Mata assumiram a forma dos medos dos Homens, pisaram o chão da terra pela primeira vez e se fizeram Anhangá.

Quando os anciãos viram Anhangá se encheram de medo e tentaram fugir, mas os jovens tomados de fúria não viram Anhangá e atacaram os anciãos para matá-los.

Anhangá esperou que os jovens matassem os anciãos.

Quando o último ancião foi golpeado, os jovens soltaram gritos de vitória, mas quando a fúria passou Anhangá se mostrou a eles e a fúria foi substituída pelo terror.
Os jovens largaram suas armas e tentaram fugir, mas Anhangá que assumia a forma dos medos dos Homens os paralisou e dançou em torno deles urrando.

Anhangá encarou o mais forte dos jovens, que não ousou enfrentar seus olhos vermelhos. O jovem mais forte chorou e implorou, e quanto mais chorava e implorava mais terror Anhangá lhe infringia, até que o jovem caiu de joelhos e Anhangá o ergueu sobre sua cabeça, despedaçou seu corpo e lançou os pedaços sobre os demais jovens, que choravam apavorados diante de Anhangá.

Exceto um.
Um jovem que não se unira aos rebeldes, não conspirou contra os anciãos e não violou o acordo com Mayra.
Anhangá sentiu o cheiro do jovem. Seu cheiro não emanava medo como o dos demais.
Anhangá se pôs diante do destemido e o fitou nos olhos, mas o jovem enfrentou seu olhar. Anhangá urrou e dançou, mas o jovem permaneceu firme e sem medo, mesmo Anhangá assumindo todas as formas de todos os medos dos Homens.

Anhangá decidiu deixar aquele jovem e matar todos os outros Homens. Anhangá sabia que os Homens temiam a solidão e quando fosse o último dos Homens o jovem temeria Anhangá, Anhangá o mataria e os Espíritos da Mata voltariam a pairar sobre o chão e sob a copa das árvores, sem que ninguém mais os ameaçasse.

Anhangá então começou a matar os Homens, que um por um, paralisados pelo medo, eram despedaçados pelas garras dele.
E quando pareceu que os Homens deixariam de caminhar sobre a terra para sempre, Anhangá parou de matá-los e sem motivo aparente recuou para onde estava o corpo de Mayra, até estancar imóvel e silencioso diante dele.

O jovem que enfrentara o olhar do Anhangá repetiu o feito e viu que Anhangá estava com medo. O jovem viu o medo nos olhos do Anhangá, mas não entendia, pois os anciãos ensinaram que os Espíritos da Mata não sentiam medo, porque não morriam.

Por instantes o silêncio engoliu a mata.
E então veio o estrondo de mil trovões, que não soavam das nuvens do céu, mas do crânio fendido de Mayra.
A escuridão da noite penetrou o crânio de Mayra e o mundo dos Homens e o mundo dos Espíritos da Mata foi tragado para dentro do crânio e depois cuspido para fora dele com violência.

E do crânio de Mayra, entre raios de tempestades surgiu Tupã.

Tupã ordenou ao Anhangá que se retirasse do grande circulo.
Anhangá obedeceu.

Tupã falou aos Espíritos da Mata.
Disse que os Espíritos da Mata retornariam à matéria leve e não mais caminhariam sobre a terra, exceto nas noites sem lua, ao longo das trilhas da mata, pois como os Homens traíram o acordo, perderam o direito à proteção das trilhas, que pertenceriam a Anhangá, que poderia atacar os Homens que violassem a floresta.
Tupã proibiu Anhangá e os Espíritos da Mata de invadir o grande círculo.

Tupã falou aos Homens.
Disse que os Homens caminhariam sobre a terra e viveriam sob a luz do dia, os Espíritos da Mata pairariam entre o chão e a copa das árvores à noite, repousariam no corpo dos animais durante o dia e de sobre a copa das árvores altas, onde o gavião voa, no dia e na noite, Tupã vigia a todos.

Tupã falou ao jovem que fitou a face de Anhangá e perguntou seu nome.

- Sumé, respondeu o jovem.

Tupã leu a alma de Sumé e viu que naquela alma as Antigas Virtudes escreveram o Código.

Tupã ordenou aos Espíritos da Mata que retornassem à floresta.
Depois ordenou aos Homens que enterrassem seus mortos e cumprissem o acordo que fizeram com Mayra.

Tupã disse aos Homens que sempre que olhassem a floresta à noite, os Espíritos da Mata estariam olhando para eles. Os Homens não os verão, mas saberão que olhos que não vêem os observam.
Tupã decretou que a mata e a noite seriam os limites e fronteiras do Homem.
Dentro do grande círculo da taba o Homem conheceria e dominaria a natureza.
Na mata escura os elementos e o desconhecido reinariam.
Sobre a taba iluminada dos homens e sobre a mata escura Tupã vigia do céu, que se sobrepõe ao mundo dos Homens e ao mundo dos Espíritos da Mata, os reconhece e os une em um plano distante que governa a luz e as trevas.

Quando Tupã se calou o sol nasceu.
Sob a luz do dia, os corpos despedaçados lembraram os Homens dos horrores da noite e os Homens temeram.

Sumé olhou demoradamente um gavião no céu, depois falou aos Homens e disse que não temessem.
- O forte defenderá o fraco e lutará pelos que não podem lutar.
- Juntos, caminharemos sobre a terra e deixaremos nela nossa marca e o brilho de nossas pegadas ofuscará o dia e expulsará a noite.

Os Homens ouviram Sumé.

Antes de adormecerem nos corpos dos animais da floresta, de fora do grande círculo os Espíritos da Mata também ouviram.
E compreenderam.

Como manda o Código.

Nenhum comentário:

Postar um comentário