sexta-feira, 26 de agosto de 2011

A Ética Espírita – Parte 1

Por Acauan Guajajara

Publicado originalmente em 07/03/2008 às 22:49


A ética espírita é uma hipotética dinâmica cósmica na qual a providência divina, o livre arbítrio espiritual e o tempo interagem na cadeia de eventos da existência de modo a garantir que todos os espíritos criados igualmente simples e ignorantes evoluam até se tornar, todos, espíritos igualmente puros e perfeitos, quando desfrutarão de uma felicidade suprema e eterna.

Nesta dinâmica cósmica, a providência divina estabelece e sustenta a ordem metafísica, as regras do jogo, como a lei do karma – que determina que os espíritos devam passar por várias encarnações para expiar antigos erros e aprender - e a lei do progresso, segundo a qual os espíritos podem evoluir ou estacionar moralmente, mas nunca regredir.

Seguindo seu livre arbítrio, cada espírito submete-se ou não a esta ordem metafísica, às regras do jogo. Os que se submetem progridem mais rápido que os que não e alcançam em menor tempo a felicidade da perfeição.

O propósito final da dinâmica cósmica é dar à existência um sentido de justiça universal, erigida da igualdade e do mérito, conforme todos os espíritos devam se submeter à mesma ordem metafísica para progredir e alcançar a felicidade da perfeição.

Esta justiça universal resolveria questões em aberto de outras filosofias e teologias morais:

O problema do Mal – por que um Deus bom permite o mal;
A conciliação entre soberania divina e livre arbítrio humano;
As injustiças da vida – por que algumas pessoas nascem condenadas a uma vida de miséria, doença e sofrimento, enquanto outras levam uma existência tranqüila e prazerosa, por que coisas ruins acontecem a pessoas boas, por que pessoas ruins se dão bem no final etc.

Segundo o espiritismo:

Deus permite o mal como decorrência da ignorância primitiva na qual os espíritos foram criados, como pré-requisito para o exercício do livre arbítrio e para estabelecer os méritos individuais dos espíritos que, de livre arbítrio, optam pelo bem.

A soberania divina e o livre arbítrio humano se conciliariam pela vigência da dinâmica cósmica que faz com que o resultado final das decisões individuais tomadas de livre arbítrio seja o encaminhamento de todos os espíritos para a perfeição e felicidade, no tempo justo a cada um.

As injustiças da vida seriam provações necessárias ao aprendizado e evolução do espírito e expiação de faltas passadas. Dentro da dinâmica cósmica as tais deixariam de ser injustas, pois a seqüência de reencarnações tanto pode estabelecer uma igualdade geral entre as existências individuais - quem foi pobre, doente ou sofredor em uma vida pode ser rico, saudável e afortunado em outra e vice-versa, quanto os que porventura passam por mais experiências ruins do que boas poderiam aprender e evoluir mais rápido espiritualmente, reduzindo o tempo requerido para alcançar a felicidade da perfeição.

Muitos adeptos do espiritismo o são por tomar como satisfatórias as proposições acima, vendo nelas explicações melhores para estas questões do que as dadas por outras filosofias ou teologias morais.

Nem sempre esta adesão e satisfação passam pelo crivo de uma análise mais metódica da coerência intrínseca e extrínseca das proposições. No mais das vezes pesa mais o alívio emocional do acreditar ter encontrado as respostas pelas quais se ansiava, do que a certeza racional de tê-las provadas verdadeiras.

Uma análise inicial da dinâmica cósmica que fundamenta a ética espírita demonstra contradições e lacunas, no mínimo tantas e tão sérias quanto às das outras filosofias e teologias morais no que se refere às questões propostas do problema do mal, livre arbítrio e injustiças da vida.

Um primeiro problema é quando o espiritismo associa o mal à ignorância.
Admitida esta associação direta e exclusiva, o espírito ao longo do tempo se afastaria do mal na medida em que aprende e avança na dinâmica cósmica, até livrar-se dele por completo, por conta de ter aprendido o suficiente para tal.

Ora, a ignorância por si só não é boa ou má. É moralmente neutra.

Escolhas morais só se definem quando há consciência delas.
Nas teologias judaica e cristã esta consciência moral é simbolizada pelo fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, antes da tomada do qual o pecado não poderia existir.

O Livro dos Espíritos diz que os espíritos foram criados com igual aptidão, tanto para o bem, quanto para o mal e que os maus o são por vontade própria.

Ocorre que se os espíritos recém criados são plenamente ignorantes das questões morais e dotados de igual aptidão para o bem ou para o mal, diante de uma decisão moral se encontrariam inevitavelmente em um impasse imobilizador.

Não poderiam julgar questões morais a partir do seu próprio conhecimento, limitados que seriam pela tabula rasa de si próprios, e não poderiam reagir intuitiva ou instintivamente, dada a equivalência de aptidões para o bem ou para o mal.

Um espírito com estas características, totalmente ignorante e moralmente neutro seria incapaz de tomar decisões morais.

O Livro dos Espíritos diz que outros espíritos ignorantes são capazes de influenciar os de seu nível ou abaixo para o mal.

Além do já exposto que ignorância não é sinônimo de maldade, fica a questão de quem influenciaria estes espíritos ignorantes que influenciariam os outros.
Não há como resolver o problema sem uma regressão infinita, incompatível com a dinâmica cósmica que parte do princípio que os espíritos são criados.

Outra contradição pode ser identificada no conceito de hierarquia moral que os espíritos estabeleceriam entre si conforme progridem na dinâmica cósmica.

O Livro dos Espíritos descreve esta hierarquia em três ordens e dez classes, com ressalvas quanto a esta divisão não ser absoluta.
Na base estariam os espíritos impuros da décima classe, com o status moral análogo ao dos demônios, e no topo os espíritos puros e perfeitos de primeira ordem e primeira classe.

A contradição está em que se a lei do progresso impede os espíritos de regredir, temos que nenhum espírito poderia apresentar um status moral inferior àquele em que foi criado - simples, ignorante e igualmente apto ao bem ou ao mal.

Porém a descrição feita dos espíritos de décima ordem fala de seres inclinados ao mal, aos vícios, às paixões degradantes, que fazem o mal por prazer e ódio ao bem.
É claro que tais seres estão moralmente muito abaixo do que se poderia chamar de espíritos simples e ignorantes, igualmente aptos para o bem ou para o mal.

Assim, ou alguns espíritos recém criados que deveriam ser moralmente neutros em sua ignorância primitiva degeneram para uma condição moral análoga à demoníaca, violando a lei do progresso, ou os espíritos humanos são criados na condição moral análoga à demoníaca, violando o princípio de ser na origem simples e ignorantes.

Além disto, se todos os espíritos são criados iguais e se os de décima ordem são inclinados ao mal, de onde vem esta inclinação?
Não se pode dizer que do livre arbítrio, pois se todos os espíritos são criados igualmente ignorantes e com iguais aptidões morais seria de se esperar que seu uso do livre arbítrio apresentasse as mesmas inclinações.
A explicação da influência de outros espíritos inferiores também pode ser descartada como exposto acima, dado requerer uma regressão infinita para se sustentar.

Qual seria então o fator diferenciador que levaria alguns espíritos originalmente ignorantes e aptos tanto para o bem quanto para o mal a inclinar seu livre arbítrio para o mal, com a intensidade perversa relatada na descrição dos espíritos de décima classe, enquanto outros criados na mesma condição não o fazem.

Uma explicação possível seria que estes espíritos possuíssem vocação inata para o mal, teriam sido criados com ela, o que contraria o princípio da igualdade original na criação e derruba um dos pilares da justiça universal da dinâmica cósmica espírita que é justamente a igualdade geral das existências individuais, uma vez que alguns espíritos já seriam na origem melhores do que outros.

Outra é que esta queda para o mal é feita de modo completamente aleatório, com o espírito optando por este caminho a partir de decisões tomadas na cegueira de sua ignorância moral primitiva, o que implicaria que o acaso interfere na evolução dos espíritos, o que também contraria a dinâmica cósmica, como definida.

3 comentários:

  1. Grande Acauãn;

    Sou ateu e praticamente um fã dos teus textos(Não sei se esse chega a ser seu trabalho, mas concordei contigo quando perguntou pq Oscar Quiroga é pago para escrever enquanto vc não é. rs...).

    Apesar disso, discordei em alguns pontos deste artigo(Esse em especial ainda não tinha visto), e resolvi fazer este comentário por 2 motivos. O primeiro é que sempre frequento seu blog mas percebo que há poucas atualizações e muita republicação de artigos; Como sempre visitei sem entretanto tecer comentários, espero que este sirva de incentivo a atualizações frequentes. Já o segundo motivo, foi entender que expor os aspectos em que discordei, pode servir inclusive como base para um novo artigo talvez até melhor, e quem sabe com aquele toque de humor crítico que vc usualmente incrementa os textos que me faz gostar tanto.

    No seu texto, vc diz que “-Um primeiro problema é quando o espiritismo associa o mal à ignorância.
    Admitida esta associação direta e exclusiva, o espírito ao longo do tempo se afastaria do mal na medida em que aprende e avança na dinâmica cósmica, até livrar-se dele por completo, por conta de ter aprendido o suficiente para tal. -Ora, a ignorância por si só não é boa ou má. É moralmente neutra”

    A ignorância não possui índole, mas é certamente um mal, e um mal a ser evitado.


    Posso estar enganado, mas quando os espíritas se referem aos espíritos involuidos, ou ainda ao estado natural da criação do espírito, eles se referem a um estado exatamente desprovido de conhecimento, e que a ignorância por si só é o grande mal a ser evitado. Daí as necessidades de evolução e aprendizado.

    Ainda hoje há pessoas que aprendem facilmente com seus erros, e pessoas que que não se cansam em dar murro em ponta de faca. Tem-se assim que o fator diferenciador que levaria um espírito a inclinar seu livre arbítrio para o bem (Conhecimento) é o descobrir (Aprender,Evoluir, obter conhecimento) que certa atitude será melhor para si e para os outros.

    Bom, temos que todo o artigo, ou parte dele pelo menos, é fundamentado em julgamento moral.

    Quando vc diz que “-Ora, a ignorância por si só não é boa ou má. É moralmente neutra”

    Mas havemos de concordar que o conceito de moralidade também esta sujeito ao meio em que vivemos.

    Temos por exemplo os Astecas, povo que acreditava não em reencarnação, mas em novo ciclo de existência, e que por um jogo de bola mesoamerico matavam e decaptavam a equipe perdedora, e ainda usavam os crânios como moldes para novas bolas. Essa conduta (normal para eles já que tudo isso voltaria a acontecer em um novo ciclo) reflete ignorância aos nossos olhos pq julgamos com o conhecimento avançado dos dias atuais. Entretanto, se houvesse alguém atualmente decaptando adversários esportivos, o cassificariamos como mau ou no mínimo doente.

    Bom, esses são os pontos em que discordei, deixando claro que não estou fazendo apologia ao espiritismo, ou qualquer outra crença religiosa. Estou apenas expondo possíveis argumentos que podem ser usados para desqualificar seu texto, inclusive na esperança de que com isso, venha um melhor ainda.

    Abração.

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  2. A parte 2 já foi escrita ou ainda será?

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  3. Será escrita, sim, Fabiano. Só não sei quando. Abs!

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