sábado, 15 de setembro de 2012

Breves - Dos Diários de um Índio Viajante IV

Por Acauan Guajajara

Breves. 

Em um outro lugar tórrido nos trópicos. 

1. Hora do almoço. A Igreja Matriz da cidade fica em frente ao meu local de hospedagem. Lugar ideal para conhecer um resumo da cultura do lugar. Só tenho que atravessar a rua e andar meio quarteirão sob o Sol. 

Desisto. 

2. Na praça da Matriz há uma redoma de vidro protegendo uma pequena motocicleta. Imaginei que fosse algum tipo de rifa, mas estando embaixo da estátua do Frei que dava nome à praça, me ocorreu ser algum tipo de relíquia católica. 

Era. 

3. Voltando. 
O Aeroporto Internacional do Galeão no Rio de Janeiro é uma zona. 
O Aeroporto de Congonhas em São Paulo não é.



quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Madeira Mamoré e a Ira de Tupã, dos "Diários de um Índio Viajante III"

Por Acauan Guajajara

1. A Obra do Homem


Falando aos construtores, destaco o significado grandioso de sua obra. Quando chegaram, a Floresta e o Rio imperavam sob aquele Sol. Confrontados por nossa determinação e nossa Ciência, a Floresta infinita recua e o poderoso Rio nos obedece. As terríveis forças da natureza se submetem ao poder de nossa vontade.

Tupã ouviu...

2. O Sol

Desde minha chegada minhas movimentações tem sido de um local refrigerado para outro, meios de translado inclusos. As exposições diretas ao Sol equatorial são muito breves, porém suficientes para me fazer entender como os vampiros se sentem. Boto a cara sob o Sol do meio dia e queimo como Cristopher Lee ao invés de brilhar como Robert Pattinson. Só arrisco uma maior exposição ao final da tarde, como Frank Langella.

n.A. (nota do Acauan) 1: Quem não entendeu a referência a Frank Langella pesquise "Drácula – 1979".

n.A. 2: Quem não entendeu a referência a Cristopher Lee não merece maiores explicações.

4. O Pezinho de Bebê

Morte inglória seria sair de São Paulo para ser atropelado em Rondônia, expectativa que vislumbro a cada travessia de rua. A administração local encontrou sua própria solução para o desrespeito à faixa de pedestres não as pintando, o que elimina o problema e economiza tinta. O trânsito de Porto Velho lembra em alguns aspectos o de Roma, noutros o de Calcutá, sem o charme romântico-cultural da Cidade Eterna e sem seja lá o que for que Calcutá tem de bom. Uma única motocicleta transportando a família inteira, mesmo que grande, é cena comum. Em uma destas avisto um delicado pezinho humano espremido entre o condutor e a mulher na garupa, que segurava o bebê com um braço enquanto tentava segurar a si própria com o outro. Isto em plena hora do rush, quando o trânsito local assume características quânticas de caos não determinístico. Que Monã proteja aquela criança, porque dos pais não dá prá esperar grande coisa.

5. A Força Nacional

Um bando de brucutus de farda foi instalado na obra, para garantir a segurança após alguns tumultos. Por um azar danado também estão instalados no meu hotel. O café da manhã tropical seria bem mais agradável se o cara na minha frente na fila do bufê não mantivesse a submetralhadora a tiracolo apontada pro meu queixo.

6. Um Suspiro de Civilização

Faço a caminhada de fim de tarde. Tão longa que seu upgrade seria uma peregrinação. Então, a civilização suspira. Chego à choperia. Concordo que associar choperia a "suspiro da civilização" é exagero piegas, mas passem a semana que passei aqui e depois me contem como chamariam. Além disto, não se trata de uma choperia qualquer. É uma microcervejaria gastronômica, ou seja, um restaurante que mantém a vista do cliente uma unidade industrial de fabricação de cerveja, que produz a bebida servida na casa. São Paulo teve uma destas certa época, daí o tratamento cerimonial dado a algo que se perdeu tão perto de casa e se reencontrou tão perto da selva.

7. As Três Marias

Três Marias é o apelido das Três Caixas d'Água, situadas na praça de mesmo nome. Sigo caminhando prá lá, depois que as rodadas de chope e comida não regional deram um descarrego nas tensões entre mim e Porto Velho.
As Três Caixas d'Água me despertam uma impressão dúbia.
Primeira e mais óbvia: De fato, são três caixas d'água. E daí?
Depois surge algum reconhecimento de que a praça tem personalidade, que as Caixas d'Água estão ali desde que a cidade era uma aldeia no meio da floresta, que por décadas foram o principal ponto de referência da região, além de abastecê-la de água, utilidade prática que a maioria dos monumentos não possui.
Resolvo incluir Porto Velho na minha série fotográfica "Noturnos Urbanos". A Igreja Matriz rende bons cliques. Prá poder dizer que naquela noite andei até o limite do que a cidade tinha de interessante, estico o percurso até as margens do Madeira, onde um Café oferece uma bela vista do rio.

8. Madeira Mamoré

Domingo. Volto à margem do Madeira para um típico programa de turista. Passeio de barco no rio, visita ao museu a céu aberto da Estrada de Ferro Madeira Mamoré e compra de artesanato indígena.
Aliás, um dos poucos lugares turísticos em que o artesanato indígena é vendido por Índios que são mais Índios que eu. Além de ter qualidade artística, outra coisa rara. Pergunto sobre a tribo deles. São karitianos. Sua língua ancestral foi preservada. Tem sonoridade algo parecida com o idioma klingon, o que confere autenticidade aos produtos vendidos.

9. Um Oficial e Cavalheiro

Volto ao Café onde conheço um tenente da engenharia do Exército Brasileiro, afastado do serviço ativo por conta de um acidente que o incapacitou. Seus modos em público incluíam chamar a garçonete com assobios altos, passar cantadas vulgares em qualquer mulher bonita que lhe cruzasse a linha de visão e insistir com cantadas mais vulgares depois de rechaçado. Um autodidata no quesito, já que não ensinam estas coisas nas Agulhas Negras.

10. A Fúria de Tupã

Como disse no começo, Tupã ouviu meu comentário sobre termos submetido as forças da natureza.
E Não gostou.
Quando Tupã não gosta de alguma coisa, demonstra isto de modo nada sutil, mas muito eficiente e logo enfrento minha primeira tempestade tropical.
Curti adoidado. Não era isto que Tupã tinha em mente quando enviou o toró, o que o motiva a radicalizar o discurso. O vento arranca parte do tronco de uma árvore a poucos metros de mim e o lança sobre um coqueiro, bem ao lado da mesa em que eu estava antes da chuva. Continuo assistindo a cena como um espetáculo, mas entendo o recado de Tupã e não me arrisco a irritá-lo mais.
O rio, a floresta e o resto do mundo desaparecem atrás de uma cortina branca de água e ressurgem em um gran finale, surpreendentemente anunciado por nosso folclórico oficial da engenharia "- veja, nossa bandeira, motivo de orgulho para todos nós". Desfraldada pelos últimos ventos da tempestade, a Bandeira do Brasil tremulava altiva, reduzindo a Floresta, o Rio e a Obra do Homem a pano de fundo de sua presença.