segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Aquiles e Jesus - Parte II

Por Acauan Guajajara

Publicado originalmente em 12/11/2006 às 14:21

Enquanto na narrativa mítica de Aquiles o mais poderoso dos homens está inevitavelmente destinado a ser vencido pela morte, na de Jesus de Nazaré a morte é vencida por um Deus que, em forma humana, renunciou a todo poder.

Aquiles encontra uma morte indesejada que lhe priva do triunfo final de sua maior luta, Tróia.
Jesus de Nazaré se submete voluntariamente aos seus inimigos para sofrer a morte em meio à tortura e humilhação.

A intersecção da queda do herói, da glória para o vazio, com a ascensão do homem-Deus, da imolação para a redenção, se dá no momento da morte, quando ambos se igualam em sua humanidade, o que lhes resta diante daquilo que os desprovê de tudo o mais.

Na iminência da morte, tanto o guerreiro indestrutível quanto o Cordeiro de Deus se sentem abandonados.
O primeiro por sua invulnerabilidade e o segundo pela presença divina.

É neste momento de semelhança entre as duas mortes míticas que se definem suas diferenças complementares.

Quando Jesus de Nazaré morre, rasga-se o véu do Templo, expressão usada em Mateus para simbolizar que o mistério inacessível foi revelado.

Tal mistério era a causa da frustração de Aquiles que, como mortal, não podia entender o Hades, que tentava interpretar a partir de sua própria realidade, uma realidade que já não lhe existia mais.

Só os deuses, de sua condição transcendente, eram capazes de compreender a mortalidade, mas como deuses eram incapazes de revelar um mistério que para eles não existia.

O véu do Templo se rasga quando a morte é penetrada por um ser que condensa em si a finitude humana e a transcendência divina.
Este feito não poderia ser realizado por um herói como Aquiles e nem mesmo por um semi-deus como Heracles.
O véu do templo só poderia ser rasgado por quem fosse ao mesmo tempo totalmente humano e totalmente divino, uma concepção inexistente no mito grego que é fundamental no mito cristão.

Só que o mito cristão não se encerra quando o véu do Templo é rasgado.
Ele se projeta para o futuro profético do segundo advento, quando Jesus retornará em glória e majestade.

Como um herói triunfante.

Como Aquiles.

Aquiles e Jesus - Parte I

Por Acauan Guajajara

Publicado originalmente em 11 de julho de 2006, às 23:12

Todas as civilizações e culturas se ergueram sobre um conjunto de mitos fundadores que estabeleceram as percepções simbólicas da realidade, a partir das quais grupamentos de comunidades humanas desenvolveram identidade, valores e objetivos comuns.

Os significados míticos associados à morte, extraídos daquelas percepções, buscavam um sentido para a finitude humana que, paradoxalmente, só era encontrado na negação desta finitude.

Neste contexto, as duas narrativas míticas que lançaram as raízes da civilização ocidental, a Ilíada de Homero e a Bíblia judaico-cristã, apresentam visões opostas e complementares sobre os significados da morte e, por extensão, sobre os significados da vida humana, a partir da morte de dois de seus respectivos protagonistas, Aquiles e Jesus de Nazaré.

Aquiles foi o herói fundamental.
O guerreiro indestrutível, de imaculado valor pessoal, inspiração e modelo para todo um povo aos olhos do qual parecia predestinado ao eterno triunfo.

Com tudo isto, o filho de Peleu era mortal, atributo que definia sua verdadeira, e derradeira, predestinação.
Aquiles tombou pelo arco de Paris, pela fúria de Apolo e por sua única fraqueza, o calcanhar não imerso nas águas do rio Estige.

A morte de Aquiles é puramente trágica.
É o fim dos triunfos.
O maior dos guerreiros se vê privado da morte gloriosa em combate ao ser abatido a distância pelo inimigo de tocaia.

O significado mítico da morte de Aquiles é resumido pelo próprio, que, evocado por Ulisses, lamenta sua estada no Hades.
Quando o rei de Ítaca declara ao companheiro que ele merece ser aclamado príncipe entre os que tombaram, Aquiles retruca que preferia ser escravo entre os vivos que nobre entre os mortos.

O sofrimento de Aquiles não provém de tormentos externos, como no inferno cristão, mas da interrupção brusca e irrevogável de tudo que fazia dele o que era.
Aquiles, na morte, contempla para sempre seu próprio esvaziamento como ser, enfrentando a dualidade dramática de ser testemunha de seu próprio inexistir, uma morte sem o alívio anestésico da inconsciência.

Sua morte traduz a certeza trágica de que todas as vitórias humanas apenas anunciam a derrota final, que anulará todo triunfo que a precedeu.

Só que esta certeza não é absoluta.
Coube a Ulisses confrontá-la. Primeiro ao restaurar o ânimo de Aquiles relatando os grandes feitos de seu filho Neoptólemo e, em outro momento da narrativa, ao recusar a oferta de imortalidade e juventude eterna feita pela ninfa Calipso, em troca da permanência dele junto a ela.
Ulisses escolhe voltar para seu reino, para sua casa e para sua esposa.

Se o vazio dos mortos pode ser preenchido pelas notícias do sucesso de um filho e se o que preenche nossas vidas finitas – amor, família, lar - vale mais para nós que uma existência imortal, a certeza trágica traduzida na morte de Aquiles não é tão certa assim.

É no hiato desta dúvida que as mortes de Aquiles e de Jesus de Nazaré se aproximam.