sábado, 6 de outubro de 2012

Sobre a cura divina

Publicado originalmente em 6/1/2005 14:22:55
por Acauan Guajajara 

O tema cura divina e o modo como é explorada por diversas instituições religiosas exige uma abordagem cuidadosa. 

Num extremo da questão temos doentes terminais, suas famílias e amigos, para quem a última esperança reside num milagre. Gente a quem não faremos bem algum se tirarmos deles o que lhes restou para se apegarem, esgotadas as possibilidades da medicina.

No outro extremo, vigaristas contumazes se aproveitam da fragilidade destas pessoas para obter proveito pessoal. 

Entre os dois extremos há uma zona cinzenta onde se misturam boas intenções e crenças sinceras de um lado e resultados que podem ir do inócuo ao desastroso do outro, ou ainda, combinações em diferentes graus de Fé verdadeira, desinformação e oportunismo, tudo isto fundido num cadinho perigoso onde a saúde do crente é, muitas vezes, reduzida a um instrumento de marketing para uso do proselitismo religioso.

Um exemplo elucidativo são as inúmeras alegações de cura da AIDS, vindas tanto de católicos carismáticos quanto de evangélicos de diversas vertentes. Não vou tratar aqui de curas reivindicadas por curandeiros avulsos, místicos ou esotéricos vários, já que meu objetivo é observar como instituições oficialmente estabelecidas lidam com este problema.

Nunca houve no mundo todo, um único caso de cura da AIDS comprovado, documentado e divulgado. 

Se houvesse, publicações especializadas como The New England Journal of Medicine, publicado pelo Massachusetts Medical Society, uma das mais respeitadas publicações médicas do mundo, dedicariam infindáveis páginas a esta ocorrência, despertando a atenção de toda a comunidade médica para a divulgada cura, o que tornaria o paciente protagonista desta recuperação o centro das atenções da medicina mundial.

Alguém comprovadamente curado de AIDS seria certamente virado do avesso pelas equipes de pesquisa médica, que levantariam nos mínimos detalhes todos os fatores que poderiam ter sido as causas de tal cura como, medicação, D.N.A., alimentação, modo de vida, fatos incidentais correlacionáveis etc, até que estas causas fossem identificadas e seus mecanismos compreendidos.

Que fique claro que a definição médica para cura da AIDS é a total e completa eliminação do vírus HIV do organismo até então infectado. Como Síndrome de Imuno-Deficiência Adquirida, a AIDS se manifesta na forma de infecções oportunistas, sendo que a cura destas infecções ou mesmo variações nos quadros sintomáticos não significam a cura da doença. 

Não obstante as questões colocadas acima, relatos de cura divina da AIDS obtidas por igrejas são mais comuns que pipoca em cinema, sendo que estes abundantes casos parecem passar completamente despercebidos da comunidade médica internacional, que por desinformação asinina, conspiração ateísta ou ação do diabo, continua acreditando que até hoje ninguém foi curado. 

As alegadas curas de AIDS são um exemplo notório da discrepância gritante entre as alegações de curas e os fatos médicos registrados. 

Mas existem outras muitas situações menos dramáticas, mas igualmente esclarecedoras, como a profusão de aleluias por conta das inúmeras “curas milagrosas” de cistos de ovários, que teriam desaparecido sem deixar vestígios, mostrando o poder de um Deus tremendo para embasbacados médicos ímpios. 

Não consigo imaginar um médico de verdade, ímpio ou crente, ficando embasbacado com o desaparecimento de um cisto, já que, na maioria dos casos, é natural e esperado que eles desapareçam por regressão espontânea, seja a paciente uma serva de Deus, de outro ou de ninguém. 

E temos também as curas de câncer. Quase sempre citadas pelo seu nome genérico, muitas vezes sem entrar em detalhes como se o câncer curado era um melanoma inicial, curável, com tratamento correto, em quase 100% dos casos ou uma metástase cerebral. 

Quanto a este último caso, gostaria muito que alguma igreja comprovasse uma única ocorrência de cura. Sinceramente ficaria feliz se alguém provasse que é possível fazer desaparecer cinco tumores do tamanho de uma laranja do cérebro de alguém (e o paciente continuar vivo, óbvio). 

O resumo da ópera é que há evidências mais que suficientes para se concluir que as alegações de cura divina por igrejas são, no mínimo, exageradas. 

Mesmo assim, várias delas exibem um caudaloso aparato de provas dos milagres e graças obtidos por suas orações, das quais sempre constam atestados médicos, cadeiras de rodas abandonadas ou radiografias de antes e depois. O engraçado é que a opinião circulante nestes meios, trombeteada ou à boca miúda, é que só os “nossos” atestados médicos, cadeiras de rodas ou radiografias são provas incontestes da ação divina. Os atestados médicos, cadeiras de rodas e radiografias da igreja concorrente são sempre falsificações grosseiras destinadas a enganar os ignorantes. 

É isto ou existe algum evangélico que acredita que Nossa Senhora Aparecida curou alguém? Se relíquias dos supostos curados valem, aquela basílica enorme perto da Via Dutra está abarrotada delas. 

E os atestados médicos? Alguém aqui sabe o que é Xantogranuloma juvenil? 

Pois é, também não sei, mas sei que esta doença, seja lá o que for, “freqüentemente regride espontaneamente”, segundo quem entende. Sem conhecimento especialista para avaliar atestados médicos que digam que alguém se curou de Xantogranuloma ou de qualquer outra coisa, eles nada provam. E é óbvio que qualquer médico que se dispor a levantar a veracidade destes milagres será imediatamente taxado de escarnecedor ateu ou algo que o valha antes de ter chance de fazer a primeira pergunta. Por que algum médico sério pagaria este mico? 

É nesta hora (talvez antes) que alguém diz – E o que você tem com isto? Se não acredita que estas pessoas são curadas o problema é seu, deixe-as em paz. 

Não acredito e nem deixo de acreditar. Mesmo porque não é o que se acredita que está em jogo aqui, mas a saúde de pessoas que podem deixar de procurar tratamento médico adequado por crerem que foram ou serão curadas por Deus com a ajuda de seus representantes, ou servos, ou seja lá como chamam a si mesmos. 

Igrejas tradicionais e clérigos esclarecidos costumam orientar seus fiéis a não trocar o tratamento médico pela espera de um milagre. Mas igrejas tradicionais são minoria. Clérigos esclarecidos, verifiquem. Quem duvidar que conte o número de esquinas em que se acha uma porta de igreja anunciando curas milagrosas no varejo, inclusive com dias e horários especiais para isto. São estas promessas de curas que atraem e mantém parte do rebanho destas igrejas e embora não seja possível precisar quantos, sempre haverá um responsáveis por elas que verão no hospital e no médico concorrentes a serem afastados. 

Quem, como eu, já ouviu a frase “doença é uma vergonha no povo de Deus, eu não vou em médico” (sic), sabe do que estou falando.

sábado, 15 de setembro de 2012

Breves - Dos Diários de um Índio Viajante IV

Por Acauan Guajajara

Breves. 

Em um outro lugar tórrido nos trópicos. 

1. Hora do almoço. A Igreja Matriz da cidade fica em frente ao meu local de hospedagem. Lugar ideal para conhecer um resumo da cultura do lugar. Só tenho que atravessar a rua e andar meio quarteirão sob o Sol. 

Desisto. 

2. Na praça da Matriz há uma redoma de vidro protegendo uma pequena motocicleta. Imaginei que fosse algum tipo de rifa, mas estando embaixo da estátua do Frei que dava nome à praça, me ocorreu ser algum tipo de relíquia católica. 

Era. 

3. Voltando. 
O Aeroporto Internacional do Galeão no Rio de Janeiro é uma zona. 
O Aeroporto de Congonhas em São Paulo não é.



quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Madeira Mamoré e a Ira de Tupã, dos "Diários de um Índio Viajante III"

Por Acauan Guajajara

1. A Obra do Homem


Falando aos construtores, destaco o significado grandioso de sua obra. Quando chegaram, a Floresta e o Rio imperavam sob aquele Sol. Confrontados por nossa determinação e nossa Ciência, a Floresta infinita recua e o poderoso Rio nos obedece. As terríveis forças da natureza se submetem ao poder de nossa vontade.

Tupã ouviu...

2. O Sol

Desde minha chegada minhas movimentações tem sido de um local refrigerado para outro, meios de translado inclusos. As exposições diretas ao Sol equatorial são muito breves, porém suficientes para me fazer entender como os vampiros se sentem. Boto a cara sob o Sol do meio dia e queimo como Cristopher Lee ao invés de brilhar como Robert Pattinson. Só arrisco uma maior exposição ao final da tarde, como Frank Langella.

n.A. (nota do Acauan) 1: Quem não entendeu a referência a Frank Langella pesquise "Drácula – 1979".

n.A. 2: Quem não entendeu a referência a Cristopher Lee não merece maiores explicações.

4. O Pezinho de Bebê

Morte inglória seria sair de São Paulo para ser atropelado em Rondônia, expectativa que vislumbro a cada travessia de rua. A administração local encontrou sua própria solução para o desrespeito à faixa de pedestres não as pintando, o que elimina o problema e economiza tinta. O trânsito de Porto Velho lembra em alguns aspectos o de Roma, noutros o de Calcutá, sem o charme romântico-cultural da Cidade Eterna e sem seja lá o que for que Calcutá tem de bom. Uma única motocicleta transportando a família inteira, mesmo que grande, é cena comum. Em uma destas avisto um delicado pezinho humano espremido entre o condutor e a mulher na garupa, que segurava o bebê com um braço enquanto tentava segurar a si própria com o outro. Isto em plena hora do rush, quando o trânsito local assume características quânticas de caos não determinístico. Que Monã proteja aquela criança, porque dos pais não dá prá esperar grande coisa.

5. A Força Nacional

Um bando de brucutus de farda foi instalado na obra, para garantir a segurança após alguns tumultos. Por um azar danado também estão instalados no meu hotel. O café da manhã tropical seria bem mais agradável se o cara na minha frente na fila do bufê não mantivesse a submetralhadora a tiracolo apontada pro meu queixo.

6. Um Suspiro de Civilização

Faço a caminhada de fim de tarde. Tão longa que seu upgrade seria uma peregrinação. Então, a civilização suspira. Chego à choperia. Concordo que associar choperia a "suspiro da civilização" é exagero piegas, mas passem a semana que passei aqui e depois me contem como chamariam. Além disto, não se trata de uma choperia qualquer. É uma microcervejaria gastronômica, ou seja, um restaurante que mantém a vista do cliente uma unidade industrial de fabricação de cerveja, que produz a bebida servida na casa. São Paulo teve uma destas certa época, daí o tratamento cerimonial dado a algo que se perdeu tão perto de casa e se reencontrou tão perto da selva.

7. As Três Marias

Três Marias é o apelido das Três Caixas d'Água, situadas na praça de mesmo nome. Sigo caminhando prá lá, depois que as rodadas de chope e comida não regional deram um descarrego nas tensões entre mim e Porto Velho.
As Três Caixas d'Água me despertam uma impressão dúbia.
Primeira e mais óbvia: De fato, são três caixas d'água. E daí?
Depois surge algum reconhecimento de que a praça tem personalidade, que as Caixas d'Água estão ali desde que a cidade era uma aldeia no meio da floresta, que por décadas foram o principal ponto de referência da região, além de abastecê-la de água, utilidade prática que a maioria dos monumentos não possui.
Resolvo incluir Porto Velho na minha série fotográfica "Noturnos Urbanos". A Igreja Matriz rende bons cliques. Prá poder dizer que naquela noite andei até o limite do que a cidade tinha de interessante, estico o percurso até as margens do Madeira, onde um Café oferece uma bela vista do rio.

8. Madeira Mamoré

Domingo. Volto à margem do Madeira para um típico programa de turista. Passeio de barco no rio, visita ao museu a céu aberto da Estrada de Ferro Madeira Mamoré e compra de artesanato indígena.
Aliás, um dos poucos lugares turísticos em que o artesanato indígena é vendido por Índios que são mais Índios que eu. Além de ter qualidade artística, outra coisa rara. Pergunto sobre a tribo deles. São karitianos. Sua língua ancestral foi preservada. Tem sonoridade algo parecida com o idioma klingon, o que confere autenticidade aos produtos vendidos.

9. Um Oficial e Cavalheiro

Volto ao Café onde conheço um tenente da engenharia do Exército Brasileiro, afastado do serviço ativo por conta de um acidente que o incapacitou. Seus modos em público incluíam chamar a garçonete com assobios altos, passar cantadas vulgares em qualquer mulher bonita que lhe cruzasse a linha de visão e insistir com cantadas mais vulgares depois de rechaçado. Um autodidata no quesito, já que não ensinam estas coisas nas Agulhas Negras.

10. A Fúria de Tupã

Como disse no começo, Tupã ouviu meu comentário sobre termos submetido as forças da natureza.
E Não gostou.
Quando Tupã não gosta de alguma coisa, demonstra isto de modo nada sutil, mas muito eficiente e logo enfrento minha primeira tempestade tropical.
Curti adoidado. Não era isto que Tupã tinha em mente quando enviou o toró, o que o motiva a radicalizar o discurso. O vento arranca parte do tronco de uma árvore a poucos metros de mim e o lança sobre um coqueiro, bem ao lado da mesa em que eu estava antes da chuva. Continuo assistindo a cena como um espetáculo, mas entendo o recado de Tupã e não me arrisco a irritá-lo mais.
O rio, a floresta e o resto do mundo desaparecem atrás de uma cortina branca de água e ressurgem em um gran finale, surpreendentemente anunciado por nosso folclórico oficial da engenharia "- veja, nossa bandeira, motivo de orgulho para todos nós". Desfraldada pelos últimos ventos da tempestade, a Bandeira do Brasil tremulava altiva, reduzindo a Floresta, o Rio e a Obra do Homem a pano de fundo de sua presença.




quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Três Caixas d'Agua - de "Os Diários de um Índio Viajante II"

Por Acauan Guajajara


1. Dizem que todo lugar tem seu cheiro característico, perceptível pelo visitante, mas não pelos nativos.  O primeiro cheiro que sinto ao desembarcar de madrugada no aeroporto de Porto Velho, capital de Rondônia, é o cheiro de fumaça. Não sei se Rondônia abriga uma suinocultura expressiva.  Se abrigar, deve ser o único lugar do mundo em que o porco inteiro tem gosto de bacon.

2. Naquela manhã sigo para meu destino. O sol nascente, a floresta tropical e o rio amazônico disputam a supremacia em um cenário poderoso e deslumbrante. Mas quem domina a paisagem é uma obra feita pelo Homem.

3. No fim do dia tenho uma visão em escala de como seria um inverno nuclear.  A fumaça que me deu boas vindas agora encobre o Sol, antecipa o poente e joga uma cortina cinzenta sobre o horizonte que no amanhecer emoldurava uma visão épica. A Obra do Homem tem seus matizes.

4. Estou hospedado bem perto do centro da cidade. O que não quer dizer nada, pois o entorno digamos, espartano, sugere que o restaurante mais próximo fica em São Paulo.  Pergunto aos nativos sobre um lugar para comer.  Me indicam uma lanchonete a alguns quarteirões.  Vou lá.  As impressões combinadas do estabelecimento e local me sugerem a possibilidade de  Wyatt Earp ter feito um lanchinho ali antes de seguir para Ok Corral. O paradoxo espaço-temporal me intriga e resolvo experimentar.

5. Me arrependo.

6. A tal lanchonete fica em uma esquina. Inicio meu ritual contemplativo de observar o comportamento humano enquanto tomo cerveja. Esquinas sempre contam algo sobre a personalidade de um lugar.  Menos esta, que deve ser a esquina mais chata do mundo.

7.  Sei lá porque os habitantes desta cidade de clima tropical superúmido parecem adorar sopa quente.  Em qualquer lugar que sirva comida abundam as terrinas cheias sendo esvaziadas. Uma das sopas mais populares recebe o sugestivo nome de Caldo de Pinto. Deve ser algum tipo de canja, mas não me senti motivado a perguntar.

8. Açaí, xarope de guaraná, castanha de caju, leite, ovo de codorna, amendoim, guaraná em pó, miratã, catuaba, mel e limão. Bata tudo isto junto no liquidificador e terá um Ricardão, nome da receita de açaí mais pedida em uma casa especializada na cidade.  Não acredito que alguém possa comer algo que leva ovo de codorna liquefeito e confirmo com a atendente a popularidade da fórmula.  Segundo ela, os clientes garantem que o efeito dura três dias, ao fim dos quais retornam para nova dose. Desnecessário explicitar qual o efeito pretendido de um troço que além dos ovinhos leva amendoim, guaraná e catuaba.  Não sei o que é o tal miratã, mas se é ingrediente do Ricardão, opto pela ignorância.

9. Não identifico um sotaque característico nos nativos.

10. No final de semana devo visitar as Três Caixas d'Água, o principal ponto turístico de Porto Velho.  Inspirador.






quinta-feira, 17 de maio de 2012

Tipos Cariocas - de Os Diários de um Índio Viajante



Por Acauan Guajajara

1. Ascensoristas

A última vez que vi um ascensorista em São Paulo ele usava calças boca de sino e estava trajado na última moda.
Ao reencontrar no Rio espécimes vivos desta profissão presumidamente extinta tive impulsos de fotografar e encaminhar a descoberta aos museus antropológicos.

Entro no elevador de um prédio moderno que abriga um Centro de Convenções com vista para a Baía.
Uma senhora uniformizada posicionada no canto deixa claro que não devo selecionar meu andar apertando o botão com seu respectivo número. Preciso cumprir o protocolo de cumprimentar, solicitar, agradecer e despedir. Seria mais fácil e rápido apertar o botão.
A cena se repete algumas vezes.
Na última, sou o único passageiro.  De repente o silêncio protocolar entre a solicitação e o agradecimento é rompido quando a ascensorista começa a entoar entusiasmadamente um hino evangélico em alto e não tão bom som.
O trajeto vertical de dezoito andares se torna terrivelmente longo.
Cogito se o recital Gospel foi motivado por intervenção do Espírito Santo ou se porque aparento apreciar este tipo de espetáculo.  Espero que tenha sido por intervenção do Espírito Santo.

Em um Hotel do Centro do Rio que viveu seus tempos de glória em outra era, o ascensorista ostentando um modelo de uniforme dos anos trinta comanda um elevador aparentemente fabricado décadas antes.

A cena sugere um paradoxo temporal.

Visto por um aspecto o ascensorista e seus botões brilhantes conduzem um equipamento acionado por alavanca e cujas portas e grade são abertas e fechadas manualmente.  E cada vez que ele abria a porta eu ficava na expectativa se Johnny Alf ou Dick Farney entrariam por ela.


Visto por outro, a alavanca de comando, os ruídos do sistema mecânico e as luzes dos andares piscando através da grade lembravam o turbolift da USS Enterprise.

2. Suburbanos

A população do Rio se divide em quatro nações: Zona Sul, Zona Norte, Morros e Subúrbio. Dizem que existe uma Zona Oeste, mas acredito que seja lenda urbana
As nações falam o mesmo idioma com diferentes dialetos e sotaques, distinguindo-se uma das outras pela localização geográfica e comportamento.
O território neutro é a praia, que as quatro nações dividem democraticamente, com variados graus de apreciação desta democracia.
Fora da areia vivem um tipo de Paz Armada na qual as quatro nações se hostilizam entre si e o único consenso é que as populações da Zona Sul, Zona Norte e Morros não gostam dos suburbanos.
Tentei ouvir a versão de um suburbano, mas no Rio ninguém admite sê-lo.
Voltando de Bonsucesso (um lugar que deveria ser uma lenda urbana, mas infelizmente não é) o taxista me tira uma dúvida histórica sobre quem seriam e onde viveriam os tais suburbanos.  Explicou alguma coisa a ver com as linhas de trens.
Não sei se entendi bem como os trilhos definem um padrão sócio-cultural que sucinta tanta rejeição, mas talvez certos aspectos do Rio sejam incompreensíveis para os paulistas.

3. O Garçom

Um tipo que Rio e São Paulo têm em comum é o Garçom à Moda Antiga.
O Garçom à Moda Antiga não é uma pessoa.  É uma instituição.
Esta nobre estirpe pode ser identificada pelo paletó branco com gravata borboleta, a postura impecavelmente ereta, a elegância dos movimentos e gestos e a cortesia hospitaleira.
Sou recebido e servido por um destes em um restaurante sem credenciais do Centro.
Comer fora de casa espeta nosso inconsciente coletivo e nos retorna àqueles medos tribais de que enquanto comemos estamos desatentos e indefesos perante sabe-se lá quais ameaças que nos espreitam da floresta ou pela vidraça. A fina arte do Garçom à Moda Antiga é a de nos fazer sentir em casa durante a refeição, acalmando nossos antigos instintos tribais, que no meu caso em particular nem são tão antigos assim.
Observo o Garçom que me atende enquanto leva um prato com uma refeição quente para o guardador de carros que marca ponto na rua sem saída onde fica o restaurante.  O homem que pede para olhar carros sob a chuva fina e fria da noite na esperança de receber trocados tem seu jantar grátis servido pelo Garçom à Moda Antiga com a mesma cortesia dirigida aos clientes pagantes, acompanhado de uma rápida conversa, atenciosa e amistosa.
Como disse, uma nobre estirpe.

4. Taxistas

Taxistas... Um deles foi o que me correlacionou suburbanos e trens.
Não lembro se antes ou depois de me contar que era graduado, pós-graduado, falava duas línguas e se sentia plenamente realizado – espiritual e financeiramente – sendo motorista de táxi.
Até aí tudo bem, seria uma parte da vida dele até interessante de se saber.
O problema é que no caminho ficamos retidos no congestionamento e ele me contou todas as partes restantes da vida dele.  Exagero meu.  Ele não falou sobre o período do zero aos três anos, do qual pouco se lembra.
Como não bastasse me pôr de posse de material suficiente para que eu escrevesse sua biografia autorizada, nos lentos e longos quilômetros que separam Bonsucesso (aquele) do hotel (o do elevador velho) meu condutor me ilumina com sua visão de mundo, o que incluiu teoria moral, teoria política, solução para os problemas brasileiros – todos -, análise autocrítica sobre os motoristas de táxi do Rio, entendendo-se por análise autocrítica uma explanação sobre os outros motoristas não serem tão honestos quanto ele próprio e..., claro, seus sucessos românticos e sexuais, que culminaram em uma narrativa sobre como conquistou uma linda prostituta tratando-a como se não o fosse.
Respondo com frases cientificamente escolhidas, cujo principal conteúdo é a sugestão subliminar e neurolinguística de que ele parasse de falar.
Nesta instrutiva viagem aprendi que Neurolinguística não serve prá porra nenhuma.

Outro taxista.
Vem me pegar no hotel.  Ainda traumatizado pela corrida veicular e verbal da noite anterior, eu o cumprimento e me preparo para acrescentar a vida e as brilhantes ideias dele ao arquivo da memória onde jazem as de seu colega.
Ele responde ao bom dia com um quase imperceptível aceno de cabeça.
Um inesperado e sepulcral silêncio nos acompanha por toda a viagem.
Dou uma rápida examinada no motorista, que se parece muito com o Sargento Garcia em dia de depressão profunda.
A certa altura a combinação de atitude misteriosa e aparência denunciante me faz temer que aquele fosse um falso taxista, que estaria me sequestrando com objetivo de me usar como escudo humano contra os Minutemen em sua tentativa de cruzar ilegalmente o Rio Grande rumo a El Paso.
Mas ele me deixa em Bonsucesso, tão sinistramente calado quanto me recebeu.  E depois deve ter seguido para a fronteira do México.

5. O Guardador de Carros

Aquele do restaurante sem credenciais onde trabalha o Garçom à Moda Antiga.
O sujeito é baixinho, de meia idade e passaria despercebido não fosse sua tintura de cabelo loiro-alaranjado anunciar sua presença de modo impossível de ignorar.

Ele vai e volta pela calçada em frente ao restaurante, mantendo uma expressão preocupada e um olhar vigilante sobre carros cujos donos estão sentados a poucos metros e podem enxergá-los pela vidraça.

Usa uma daquelas capas plásticas vendidas em estádios para se proteger da chuva – aquela fria e fina, que eu devo ter trazido de São Paulo para o Rio por algum engano.

Quando o Garçom lhe traz a comida o Guardador conta a ele sobre suas filhas.  Diz que estão muito bem de vida, que moram em casões e que ficava com vergonha diante delas.
O Garçom pergunta sobre a vergonha, com um tom de voz que não expressava censura ou julgamento.
A conversa é interrompida por um cliente de saída, que dá um dinheiro maior que o esperado ao Guardador, acompanhado de comentários lançados em tom de brincadeira sobre ele não merecer aquele dinheiro, seguidos de recomendações para que cortasse o cabelo, parasse de pintá-lo e arranjasse emprego.
Endosso a sugestão para que abandonasse aquela cor capilar.  As demais me pareceram grosseiramente desnecessárias. Percebo que a nota recebida custou mais caro ao Guardador do que o esforço para se fingir vigilante.

Fico sem saber se as filhas ricas eram reais ou uma daquelas fantasias que pessoas nesta condição acreditam que as farão ser vistas com algum respeito. Ou que caminhos da vida o levaram àquele beco.
Do meu ponto de vista, se parasse de chover a vida do Guardador já melhoraria.
Fiz minha parte voltando para São Paulo no dia seguinte.


  

sábado, 21 de abril de 2012

Metafísica Básica II - A Consciência



Por Acauan Guajajara


A Consciência humana perante o infinito é uma questão metafísica básica porque a consciência percebe que está contida na realidade tanto quanto percebe que a realidade está contida nela.

Toda percepção humana da realidade existe na consciência individual e apenas nela.
Assim, a consciência individual ou autoconsciência pode conhecer apenas a si própria como existência objetiva, como ser. Todos os demais seres são reconhecidos como tais pela consciência individual como extensão do conhecimento que a consciência tem de si própria.

Em outras palavras, a consciência individual admite que os demais seres existam de modo idêntico à existência que reconhece em si própria.
A alternativa a esta admissão é o Solipsismo, a tese de que em última instância a consciência individual é o único ser real, dado ser impossível ter certeza de que todos os demais seres não são produto da imaginação desta consciência.

Como a consciência individual só conhece objetivamente a própria existência, a hipótese Solipsista não pode ser provada falsa, mas a probabilidade de que seja verdadeira pode ser reduzida na proporção em que os estímulos externos que percebemos são significativos per si. Quando tropeçamos em uma pedra, constatamos que a realidade da dor dá testemunho de que a pedra é real ou consideramos que a dor e a pedra são criações da consciência, que se torna coadjuvante impotente em sua própria criação.
Se verdadeira a hipótese Solipsista, cada um pode se imaginar como o único ser real, um Deus esquizofrênico que é prisioneiro no mundo que criou.

Admitido que a consciência individual seja parte da realidade e não o todo, restam as hipóteses de o conjunto da realidade ser finito ou infinito.

Se finito, em tese existe a possibilidade de que o conjunto da realidade possa ser conhecido pela experiência acumulada e transmitida pelas gerações humanas, caso nossa determinação, tempo, recursos e métodos dedicados ao objetivo forem suficientes. Uma realidade finita é explicável pela Ciência.

Se o conjunto da realidade é infinito, pode existir ou não um nexo que permita identificar na fração finita propriedades que se mantém infinitamente, como nas abstrações matemáticas da geometria e dos conjuntos numéricos. Uma realidade infinita com tal nexo é objeto de estudo da Metafísica.

Se o conjunto da realidade é infinito e desconexo, então não é compreensível pela consciência individual. As interações com a realidade se restringiriam a uma fração insignificante do todo e as conclusões tiradas pela experiência teriam significado apenas utilitário. Nesta realidade não existiriam referenciais absolutos. Os únicos referenciais seriam aqueles escolhidos arbitrariamente. Este é o mundo do relativismo filosófico.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Metafísica Básica I – O Infinito

Por Acauan Guajajara

A consciência humana perante o infinito é uma das questões metafísicas básicas.

Uma consciência individual que contempla o infinito se vê como um ponto central de onde irradiam infinitas retas em todas as direções nas quais a percepção consciente só alcança um limitado segmento de algumas das retas irradiadas, não de todas, resultando em uma alegoria geométrica na qual a consciência individual é um ponto no centro do sólido infinito da realidade.

Como um farol de alcance limitado, a consciência ilumina seu entorno próximo neste sólido, permanecendo escura a infinita vastidão restante.

Esta alegoria geométrica permite representar a construção do senso de realidade pela consciência individual, uma vez que a reta é uma entidade infinita da qual se pode conhecer as propriedades do todo a partir do conhecimento das propriedades da parte.

Sem esta idéia de continuum seria impossível qualquer concepção de realidade, pois qualquer parte finita de um todo infinito seria insignificante perante este todo e o conhecimento da parte em nada implicaria para o conhecimento do todo, como um farol que ilumina os recifes próximos, mas nada informa sobre a imensidão do oceano do qual alcança apenas as bordas.

Se não há o continuum, qualquer idéia formulada a partir de nossas percepções não teria qualquer significado absoluto. A própria idéia de realidade nada mais seria que o modo como imaginamos um todo além de nossa possibilidade de perscrutar.