quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Crônicas da Ante-sala do Inferno

Por Acauan Guajajara

Publicado originalmente em 10/4/2005 17:24:13

1. Tucão

Tucão não tinha dúvidas sobre onde estava. A vida que levou não lhe permitia esperança em alternativas.

Só não entendia o porquê da demora.
Não estava com medo.
O que poderia encontrar ali que já não tivesse testemunhado? Não apenas testemunhado. Ordenado.

Ser lançado no fogo?
Perdera a conta de quantos inimigos mandara para o microondas ainda vivos.
Ainda podia ouvir seus gritos, implorando para que atirassem neles assim que as chamas dos pneus começavam a ganhar força.
- Bundões, pensou Tucão.
A maioria desmaiava logo no começo, por causa da fumaça preta e mal sentia as queimaduras.
- Só o Tonico do Macaco foi macho até o fim. Morreu me encarando. Deu vontade de aliviar a do cara e dar um tiro na testa dele, mas se demonstrasse piedade o resto da turma não ia aprender a lição do exemplo, ou pior, ia achar que o Tucão tava ficando mole, aí ia sobrar pra mim.

Tucão seguia imaginando o que poderiam fazer com ele por ali
Enfiar garfos na carne?
Já tinha cortado orelhas, pés e mãos o suficiente para montar vários caras inteiros só com os pedaços. O que era terror para a gente do asfalto era a rotina de vida do Tucão.

Não tinha medo, só estava incomodado com a espera. Parecia que estava lá há séculos. Estava ansioso para encarar as broncas de uma vez e acabar com aquela agonia, aquilo sim é que estava sendo um inferno.

O tempo não passava. Vez por outra Tucão pensava em argumentar com alguém, pedir para aliviar a dele, soltar aquela conversa de que foi criança pobre, sem oportunidades – aquela coisa de vítima da sociedade.
Mas desistia logo da idéia.
Tucão não era besta. Só os babacas da faculdade é que acreditavam naquelas besteiras. Se ele, o Tucão, não era bobo para achar que aquilo justificava seus atos, não ia ser o manda-chuva aqui do pedaço que ia cair nesta lábia.

A espera parecia interminável para o Tucão, que já tinha relembrado toda a sua vida em detalhes. Talvez mais de uma vez, talvez milhares de vezes. Era impossível ter certeza naquele lugar.

Lembrou de quando era chamado de Tucão Gravata, pela sua assinatura nas vítimas – cortava a garganta e puxava a língua para fora, que ficava com aparência de uma gravata vermelha saindo pelo pescoço do corpo. Um enfeite que avisava os manos que o Tucão não era de brincar em serviço.

É..., naquela vida era preciso meter bronca, assustar os caras. Quando eles se acostumavam com as broncas era hora de inventar coisa nova, deixar claro quem amedrontava e quem era amedrontado – o cara que amedrontava mandava. Era a lei.

Por isto Tucão não estava com medo, ele era o que amedrontava.

Só temia que aquela espera não acabasse nunca.

Tucão voltou a pensar se contando a história da criança pobre com jeito, talvez conseguisse reduzir a espera, acabar com aquela agonia.
Não, só babaca de faculdade acredita nisto. Igual aquela doutorazinha idiota.

Tucão teve a impressão de que era a milésima vez que repetia aquilo.


2. Pastor Mirandinha

O Pastor Mirandinha ainda conservava a esperança.

Talvez as coisas não fossem tão imediatas como ensinava em sua Igreja.
Talvez os anjos precisassem de um tempinho para preparar a morada ou dar ao salvo um último momento para refletir sobre seus pecados, se arrepender e entrar na glória.

Sim, era isto.
Repassaria seus pecados, se arrependeria em nome dele e sua entrada na morada celestial não tardaria mais.

Mas estava tardando.
Pastor Mirandinha não entendia.

Ele era um salvo. Remido no sangue do cordeiro. Um filho de Deus cujo nome foi escrito na glória pelo sacrifício vicário daquele de quem já deveria estar comungando da presença.

Mas não estava comungando da presença dele e nem de ninguém.
Apenas esperando e não entendia o porquê da espera, que parecia interminável.

Não podia ser por aquele pecado daquela vez. Seu momento de fraqueza. Não, ele era um salvo, um justo – luz do mundo e sal da Terra. Não seria aquele pequeno deslize que lhe fecharia os portões da Jerusalém Celestial.

Ou fecharia?
Não, nunca. Aquele pensamento foi soprado pelo inimigo num último ataque tentando lhe tirar a Fé. Querendo fazer com que morresse na praia agora que estava tão perto do objetivo que pregara ser a herança prometida a todos que compartilhavam sua crença.

O Pastor Mirandinha procurou sua Bíblia.
Não era a primeira vez, nem a segunda que fazia isto. Talvez a conta passasse em muito dos mil e mesmo assim insistia em procurar por uma Bíblia que não estava lá.
Nada estava lá.

Era apenas ele e a espera.

Tudo bem, pensava o Pastor Mirandinha, deve faltar apenas mais um pouco. Logo ouvirei as trombetas e os anjos me explicarão o porquê desta demora. Com certeza haverá um motivo tão sublime que este pequeno incidente será recontado com risos pela eternidade que o aguardava, uma eternidade sem lágrimas.

Terminou de pensar isto e procurou por sua Bíblia de novo. Era um ato reflexo. Não conseguia controlá-lo desde que chegara ali, já não sabia mais há quanto tempo.

Lembrou mais uma vez daquele pecado. Um ato de fraqueza, como o de Pedro ao negar a ele. Não seria por aquilo que seria lançado no... Não, não podia nem pensar na possibilidade. Era o Inimigo de novo. Ele era um salvo, a espera fazia parte de algum propósito superior, que ele não entendia agora, mas que lhe seria explicado no tempo devido.

A ele só cabia esperar, esperar e esperar.

Pastor Mirandinha procurou sua Bíblia mais uma vez.


3. A Mulher Letrada

- Fúteis e indecisos - aqueles que não tomaram partido do bem ou do mal são rejeitados pelo Céu e Inferno.

Aquela passagem de A Divina Comédia de Dante lhe voltava a mente com uma freqüência tão incômoda quanto a espera em si.

Já havia examinado a situação em que se encontrava e havia chegado à única conclusão possível – não havia dados suficientes para análise.
O ato de esperar não lhe fornecia informações passíveis de uma compilação estatística representativa, logo, nada estaria logicamente definido enquanto mais fatos não estivessem disponíveis.

- Fúteis e indecisos..., forçou-se a abortar aquele pensamento que insistia em voltar contra a sua vontade.
Gostava de citações, conhecia milhares de memória. Repassa-las, classifica-las e correlaciona-las poderia ser uma boa forma de dar serventia útil à espera.
Mas sempre que tentava, aquele trecho que descrevia o destino dos abandonados entre o Aqueronte e o Limbo era sempre o primeiro resgatado por sua memória, o que a fazia desistir de tentar daquele modo tirar proveito intelectual da condição em que se encontrava.

Mas havia outras memórias.

Organizadas e catalogadas em sua mente de um modo mais metódico que a maioria das bibliotecas.
Procurou pelas lembranças que lhe poderiam ser úteis naquela situação.

- Tucão.

Se a intenção era encontrar uma opção para pensamentos dantescos, Tucão Gravata era o nome certo.

Tinha certeza que compreendia melhor o mundo de Tucão do que ele próprio.
Afinal, havia feito um estudo das três gerações de seus ascendentes e traçado um rigoroso estudo sobre a cadeia de pressões sociais que construíram aquela personalidade polêmica.

Havia mergulhado tão completamente na empreitada de provar que a vida de Tucão poderia ser explicada pelo determinismo histórico, que não hesitou em se aprofundar em seu estudo um tanto além do que previa a ortodoxia da pesquisa acadêmica.

Bem, ela se considerava um tanto além do tipo de mulher que deixava as convenções burguesas ditar como deviam ser seus relacionamentos.

- Fúteis e indecisos -..., por isto aquela inconveniente citação não lhe dizia respeito.

Era séria e decidida a ponto de se aprofundar no submundo que assustava suas colegas na mesma proporção que as excitava.
Se tivesse que ter um papel na Comédia, seria aquele que Dante atribuiu a Virgílio e não como um dos figurantes anônimos de quem o poeta disse só merecerem desprezo.

- Tucão.

Lembrou-se do episódio em que o pastor da comunidade havia anunciado em sua Igreja que estava fazendo jejum e oração para ter forças para repreender os demônios que inspiravam Tucão, que, uma vez expulsos as potestades do ar que o dominavam, apresentaria seu testemunho naquele púlpito de como fora liberto pelo poder do Espírito.

Tucão, quando soube, riu e mandou que trouxessem o pastor a sua presença. Quando perguntaram se queria que o levassem para o microondas ele riu de novo, disse que quem esculachasse o cara pagaria o preço da desobediência.

- Ele não disse que converteria o Tucão? Vamos ver quem converte quem.

Ela presenciou o Tucão dizer aquelas palavras.
Também viu como Gravata recebia todos os dias, a portas fechadas, o religioso, que o visitava sempre com a mesma Bíblia embaixo do braço.
Ela notou que o pastor saía com uma aparência abatida todas as vezes, enquanto Tucão soltava fartas gargalhadas assim que o ouvia bater a porta.

Ela e o pastor nunca trocaram uma palavra, ou melhor, apenas uma, vinda da parte dele.

Um dia ela notara que o pastor, após ter saído com Tucão, voltara sem sua Bíblia.
Ela apenas olhou para o braço direito dele, mantido na mesma posição usual de quando carregava o livro – reflexo condicionado por anos de hábito, sem que nada estivesse sendo seguro por ele.

O pastor percebeu o olhar e disse apenas:
- O microondas..., o microondas...

Por tudo isto ela não era, não podia ser fútil ou indecisa. A citação de Dante não dizia respeito a sua pessoa.

Ela tinha conhecimento suficiente da realidade dos fatos para entender todo o processo quando a espera terminasse.

Mas a espera parecia não terminar nunca.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Íncubus e Súcubus

por Acauan Guajajara

Publicado originalmente em 21/5/2004 17:09:26

Os roteiristas responsáveis pelos exorcismos televisionados da Organização Universal deveriam ler um pouco mais de mitologia da Idade Média para enriquecer os diálogos entre pastores e demônios.
Demônio da Universal só sai dos quintos para atrapalhar vida financeira do crente que atrasou o dízimo ou para botar uma amante gostosona no caminho do marido da fiel inadimplente com a Fogueira Santa.

Não sei como Astaroth, Leviatã ou Asmodeu ainda não moveram um processo contra a Rede Record por calúnia, injúria e danos morais, reclamando que eles não têm absolutamente nada a ver com aqueles imbecis de cara eletronicamente escondida, que usam aquela voz do Pato Donald para repetir sempre as mesmas besteiras.

Mas não é destas primadonas infernais que eu quero falar, mas de dois interessantes grupos de coadjuvantes das hostes caídas: os Íncubus e Súcubus.

Íncubus e Súcubus são demônios especializados na sedução sexual, visitando o leito das vítimas durante a noite e transando com elas.
Os Íncubus são as entidades masculinas e os Súcubus as femininas.
Só digo que se os Súcubus são mesmo aquelas gostosonas nuas que aparecem nas representações artísticas, quem é atacado por eles de vítima não tem nada.

Mas são personagens legais, um resumo de como a mitologia de uma sociedade pode absorver e traduzir os efeitos da repressão sexual.

Íncubus e Súcubus tinham uma predileção por quem não deveria ter predileção por eles, como monges, freiras e mulheres solteiras e solitárias, que segundo os relatos eram vítimas tão freqüentes destas criaturas que já haviam desistido de trancar as janelas.

As incursões de Íncubus e Súcubus eram denunciadas pelas poluções noturnas nos homens e pelos sonhos eróticos nas mulheres. No caso destas, por vezes o incubus se empolgava e deixava a coitada em estado interessante, com uma barriga para explicar.
Nestes casos as mulheres tinham uma escolha nada confortável. Confessar que foi o namorado e ser renegada por todos como vadia, inclusive pelo namorado ou contar que foi estuprada por um Incubus e torcer para o idiota do pai acreditar e o desgraçado do padre não acusa-la de ser uma bruxa.

O mago Merlim, mentor do rei Artur, segundo a lenda, era fruto de uma destas uniões de uma mulher humana com um Incubus.

Com o homem, sem neuras. De certa forma o Súcubus era a mulher ideal. Bonita, gostosa, aceitava uma noite de amor sem compromisso e não ficava esperando você ligar no dia seguinte. Mesmo porque o telefone ainda não tinha sido inventado.
Além disto, o Súcubus não engravidava, não tinha TPM e não te levava para conhecer a família dele.

Imaginem um pobre camponês medieval chegando em casa depois da farra, de madrugada, bêbado, cheirando a perfume barato (que devia ser forte pra caramba, já que a turma da época não tomava banho) e dando de cara com a mulher, já pronta para meter o cinto de castidade nas partes baixas dele. O pobre camponês faz uma cara de assustado e diz: - Mulher, você não sabe o que aconteceu, fui atacado por um Súcubus.
Deve ter funcionado pelo menos uma vez, pois alguém acreditou e passou esta história para frente.

Íncubus e Súcubus aparentemente estão mais ligados às antigas mitologias druídicas celtas do que ao cristianismo, tendo sido promovidos a condição de demônios por um destes sincretismos que a igreja não reconhece, mas também não nega.
A distância dos Íncubus e Súcubus dos papéis usuais atribuídos aos demônios na mitologia cristã fica clara no fato de o objetivo destes seres não ser levar os homens e mulheres à perdição através do pecado da luxúria, mas drenar deles suas energias vitais através do ato sexual. Algo mais próximo do vampirismo do que da religiosidade clássica.

Como criaturas sobrenaturais detestam céticos e nunca se manifestam para eles, é muito improvável que um Súcubus com a cara da Gisele Bundchen e o corpo da Juliana Paes apareça na minha cama à noite, nua, ávida por sexo selvagem e sem compromisso.

Vou me converter.

IBLIS

por Acauan Guajajara

Publicado originalmente em 4/5/2004 14:52:17

"Criamo-vos e vos demos configuração, então dissemos aos anjos: Prostrais-vos ante Adão! E todos se prostraram, menos Iblis, que se recusou a ser dos prostrados. Perguntou-lhe (Deus): Que foi que te impediu de prostrar-te, embora to tivéssemos ordenado? Respondeu: Sou superior a ele; a mim criaste do fogo, e a ele do barro."

7ª SURATA, AL A’RAF, Os Cimos, versos 11 e 12

"Tenho muitos nomes."

Lúcifer


Iblis é o correspondente na teologia islâmica ao Lúcifer da teologia cristã.

É difícil escolher entre a afirmação de que se tratam de duas versões do mesmo personagem ou de dois personagens distintos, dado que as semelhanças entre ambos são óbvias e as distinções sutis, porém decisivas.

Uma característica diferencial importante é que Lúcifer foi formatado dentro da teologia cristã fundindo-se num mesmo personagem a serpente do Éden, o Satanás hebraico do Livro de Jó e o Demônio tentador dos Evangelhos.
A forma final do anjo rebelde, Primeiro entre os Caídos, foi definida mais pelo poema épico religioso Paradise Lost, de John Milton, do que pela Bíblia.

Já Iblis, seu alter ego árabe, tem sua origem e natureza explicita e diretamente descritas no Corão, de modo repetitivo em várias suratas, no melhor estilo da Recitação de Mohamed.
Isto torna Iblis teologicamente mais autêntico do que Lúcifer, mesmo sendo ambos variantes da tradição judaica sobre o tema.

Iblis e Lúcifer têm em comum o fato de representarem o mal, de se dedicarem a afastar o homem de Deus e o título de Satã ou Al Shaitan, O Adversário, em hebraico e árabe respectivamente.

Mas enquanto o Portador da Luz é tido e reconhecido como um anjo, Iblis é um Jinn, um gênio, uma entidade que o Islã herdou da mitologia árabe tornando-o o que Samir El-Hayek, tradutor do Alcorão para o português, define como sendo um espírito ou uma força invisível ou oculta.

Os Jinns, dos quais Iblis é o mais proeminente, não possuem os poderes sobrenaturais de Lúcifer e seus demônios. Eles têm a capacidade de influenciar os homens, mas só aqueles que espontaneamente escolherem segui-los, dando a entender que os Jinns só podem conduzir ao mal quem é predisposto a ele, ao contrário de Satanás/ Lúcifer, que tem por objetivo corromper todas as almas, como prova a tentação feita ao próprio Jesus de Nazaré, melhor exemplo de que na teologia cristã, ao contrário da islâmica, ninguém está livre do assédio do demônio.

Um outro diferencial interessantíssimo entre Iblis e Lúcifer é que ambos se dedicam à queda do homem como uma vingança contra Deus, mas ao contrário de Lúcifer, que toma esta missão para si à revelia da vontade divina, Iblis o faz com a autorização expressa de Deus, como lemos na Sura 15:

Criamos o homem de argila, de barro modelável. Antes dele, havíamos criado os gênios de fogo puríssimo. Recorda-te de quando o teu Senhor disse aos anjos: Criarei um ser humano de argila, de barro modelável. E ao tê-lo terminado e alentado com o Meu Espírito, prostrai-vos ante ele. Todos os anjos se prostraram unanimemente, Menos Iblis, que se negou a ser um dos prostrados.
Então, (Deus) disse: Ó Iblis, que foi que te impediu de seres um dos prostrados?
Respondeu: É inadmissível que me prostre ante um ser que criaste de argila, de barro modelável.
Disse-lhe Deus: Vai-te daqui (do Paraíso), porque és maldito! E a maldição pesará sobre ti até o Dia do Juízo.
Disse: Ó Senhor meu, tolera-me até ao dia em que forem ressuscitados!
Disse-lhe: Serás, pois, dos tolerados, Até ao dia do término prefixado.
Disse: Ó Senhor meu, por me teres colocado no erro, juro que os alucinarei na terra e os colocarei, a todos, no erro; Salvo, dentre eles, os Teus servos sinceros.
Disse-lhes: Eis aqui a senda rela, que conduzirá a Mim! Tu não terá autoridade alguma sobre os Meus servos, a não ser sobre aqueles que te seguirem, dentre os seduzíveis. O inferno será o destino de todos eles.

15ª SURATA, AL HIJR, verso 26 – 43


"Os motivos pelos quais Deus teria autorizado Iblis a espalhar o mal entre os homens parece ser uma incógnita mesmo entre os teólogos muçulmanos, já que o site da Sociedade Beneficiente Muçulmana do Rio de Janeiro registra o seguinte comentário sobre o assunto:
Sabemos, por certo, que a batalha entre Adão (o homem) e Iblis (Satã) é muito antiga.
A guerra entre os dois foi declarada por Satã por causa do mal inerente a ele, de sua vaidade, inveja e ressentimento em relação ao homem. Ele teve a Divina permissão para realizar esta batalha por alguma razão que só Allah conhece
."

Fonte: Às Sombras do Alcorão, SBMRJ


Mas não há dúvidas quanto à característica mais marcante tanto de Iblis quanto de Lúcifer ser comum aos dois: orgulho inabalável.
Mesmo cara a cara com o poder infinito de Deus, ciente das consequências de seu ato, Iblis recusa-se a se prostar diante de quem não reconhece como seu superior, tal como Lúcifer proclama preferir reinar no Inferno do que servir no Céu.

Orgulho parece ser o primeiro pecado para as duas grandes religiões monoteístas, o que é compreensível dado que uma proclama que a exaltação do homem provém de sua humilhação enquanto a outra denomina todos os seus fiéis como submissos.

Os que negam a Iblis e a Lúcifer qualquer virtude, deveriam enxergar neles pelo menos bravura, bravura alimentada pelos motivos errados talvez, mas que nem por isto deixa de sê-la.

Dito isto e para encerrar de um modo ameno, a diferença mais reconfortante para o observador da religião entre Lúcifer com seus demônios e Iblis com seus Jinns é que estes, segundo os muçulmanos, não tem o poder de incorporar humanos e portanto não existe exorcismo no Islã, poupando a todos nós do constrangimento de assistir espetáculos conduzidos sob o bordão “Sai Jinn em nome de Mohamed”.
O que a gente vê por aí já é mais do que suficiente.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Nietzsche revisitado – a síntese de O Anticristo

Por Acauan Guajajara

Publicado originalmente em 21/11/2005 às 17:59

"E desde então surgiu um problema absurdo: "Como Deus pode consentir nisto?" A razão perturbada da pequena comunidade achou uma resposta de um absurdo verdadeiramente terrível: Deus deu o seu filho para o perdão dos pecados, em sacrifício. Ah! Como terminou de uma assentada o Evangelho! O sacrifício expiatório na sua forma mais desprezível, mais bárbara, o sacrifício dos inocentes pelas faltas dos pecadores! Que espantoso paganismo! Não tinha Jesus suprimido até a idéia do pecado? Não havia negado o abismo entre Deus e o homem, vivido essa unidade entre Deus e o homem, que era a sua boa nova?... E isto não era para ele um privilégio! Desde então se introduz a pouco e pouco no tipo do Salvador a doutrina do "juízo" e da vinda, a doutrina da morte por sacrifico, a doutrina da ressurreição que escamoteia toda a idéia de salvação, toda a só e única realidade do Evangelho a favor de um estado depois da morte... Paulo tornou lógica essa concepção - concepção descarada! – com aquela insolência rabínica que o caracteriza em todas as coisas: "Se Cristo não ressuscitou dentre os mortos, é vã a nossa fé". E de um só golpe converte-se o Evangelho na promessa irrealizável mais digna de desprezo, a doutrina insolente da imortalidade pessoal... O próprio Paulo a ensinava ainda, como uma recompensa!"

Friedrich W. Nietzsche, O Anticristo, capítulo 41

No capítulo destacado acima de O Anticristo, Nietzsche nos apresenta o que pode ser a síntese de sua crítica ao cristianismo.

O filósofo aponta a morte do Cristo como o momento que decide o destino do Evangelho, quando, nas palavras do autor, a boa nova foi seguida de perto pela pior de todas - a de Paulo.

A tese é que a crucificação de Jesus de Nazaré colocou seus seguidores diante de um dilema: O mestre morreu. Qual o significado de sua morte?
Uma solução seria os seguidores darem conotação heróica à morte de seu Messias, já que o herói conhece o triunfo em vida e a glória na morte.

Mas, para Nietzsche, não havia como identificar a morte do Cristo com a morte do herói, pois para ele a noção do herói é essencialmente antievangélica.

Até a sua morte, Jesus de Nazaré foi um pregador rejeitado pelos judeus e um líder popular que nada conseguiu contra o poder romano. Na religião e na política não triunfou em vida.
Preso sem resistência, vendo o povo se voltar contra ele e seus seguidores mais próximos fugirem apavorados, terminou executado de modo humilhante.

Sem triunfo e glória, o cristianismo corria o risco de perecer no berço.

É aí que surgem as doutrinas do sacrifício vicário, da ressurreição, do segundo advento e do juízo.

Tais doutrinas criaram a fé de que a morte na cruz foi o triunfo de uma missão divina destinada a remir os pecados humanos visando à glória de Deus.
O triunfo e a glória que não foram testemunhados factualmente são definidos espiritualmente e só se mostrariam em sua plenitude no fim dos tempos.

É contra isto que Nietzsche se enfurece.
Ao contrário do que muitos possam pensar, em nenhum trecho de O Anticristo encontramos uma declaração de repulsa ao Evangelho em si.
O filósofo renega o que chama de "conversão do Evangelho na mais desprezível e irrealizável das promessas, a petulante doutrina da imortalidade do indivíduo", pois para ele "a boa nova não se manifesta através de milagres, recompensas, promessas ou escrituras. É, do principio ao fim, seu próprio milagre, sua própria recompensa, sua própria promessa, seu próprio reino de Deus”.
Nietzsche vê na origem do cristianismo um movimento de características budistas, que promete a tranqüilidade e felicidade na terra. Este movimento conduzido por Jesus de Nazaré em vida, teria findado com a morte na cruz, sendo substituído por outro movimento instituído em torno dos novos significados dados a esta morte – é este o cristianismo que o filósofo rejeita e critica.

Visto desta forma, O Anticristo deveria chamar-se O Ante-Paulo, já que é ao apóstolo de Tarso que Nietzsche dirige suas mais duras críticas, tendo-o como expressão do sangue de teólogo que despreza e representação do instinto de sacerdote que odeia.
Paulo é mostrado como um falsário que rejeita a proposta primitiva do Evangelho de felicidade real nesta vida, a substituindo por uma felicidade prometida para uma outra vida (e ainda assim vinculada a condições), transformando o cristianismo em uma "religião que promete tudo, mas não cumpre nada".

Para Nietzsche, as conseqüências deste falseamento conduzido por Paulo seriam posteriormente estendidas à própria História, uma vez que o cristianismo dele oriundo reivindicaria primeiro o passado judaico, e posteriormente toda a história pregressa da humanidade, como uma pré-história do cristianismo.
O filósofo neste ponto se omite de reconhecer que nossa percepção da História, como hoje a temos, surge justamente da necessidade de o pensamento cristão assentar-se em um contínuo temporal de eventos que se inicia na eternidade e se finda nela, da criação ao fim dos tempos.

É sobre este assentamento histórico que o cristianismo elevou a morte na cruz da condição de encerramento inglório de uma vida sem triunfo, para cumprimento de uma promessa feita no início dos tempos, o Messias judaico que triunfa na redenção e profetiza a vindoura glória eterna. Ou seja, passado, presente e futuro foram combinados para dar sentido a um acontecimento que dentro de sua contemporaneidade era completamente desprovido dele.

Este sentido histórico do cristianismo, segundo o filósofo, transferiu o centro de gravidade da vida, dela própria (o aqui, agora, o real, o instinto) para um além indefinido (no espaço, no tempo, na vontade) que na prática representa o mesmo que trocar a vida pelo nada.

É obviamente temeroso tratar um pensamento de ruptura com toda a tradição filosófica ocidental, como o é o pensamento de Nietzsche, em aventuras diletantes como este brevíssimo resumo. Assim como é temeroso mergulhar de cabeça em sua visão de mundo e correr o risco de se deixar seduzir pela transmutação de todos os valores que pregava, sem estar preparado para as terríveis conseqüências possíveis.

Mas não podemos deixar de louvar a coragem deste pensamento que ousou proclamar para uma civilização ocidental moldada pelas doutrinas de Paulo que no fundo só existiu um cristão, e ele morreu na cruz.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

O crente fundamentalista que encontrou um Deus legal

Da série cordel na web
Publicado originalmente m 25/9/2003 17:53:47

Por Acauan Guajajara

I – De como Severino viveu, se converteu e morreu

Severino era um cabra mais pior que encapetado
De tudo que era maldade ele já tinha praticado
No copo era imbatível, bebia por atacado
Brigava, jogava e mentia, assim vivia o condenado

Só era bem recebido pela tal madame Cristina
Com quem gastava tudo que ganhava na jogatina
Gabava-se que para ele três mulheres eram fichinha
No bordel fazia de tudo, menos beijar a bichinha

Mas sucedeu-se que um dia, ninguém sabe bem porque
Severino sumiu-se uns tempos, pra onde não sei dizer
Sentiram a falta dele no carteado e no métier
Onde anda o Severino? Quem podia responder?

Pro assombro da cidade, foi numa tarde de sábado
Que todo empertigado reaparece o mal falado
De livro em baixo do braço e dentro de um terno passado
Não podia ser Severino, devia ser seu copiado

Acercado de toda gente que queria explicação
Severino calmamente esperou a aproximação
Quando todo mundo à volta o olhava com atenção
Solta ele um grande grito: “ENCONTREI A SALVAÇÃO!”

O povo fez-se em silêncio, o encapetado abestalhou-se?
Não, dizia ele, da perdição o Senhor me trouxe
E hoje sou renascido, lavado no sangue da cruz
De agora em diante vivo para louvar o nome de Jesus

Devia ser brincadeira ou excesso de cachaça
Dizia o povo reunido lá no meio da praça
O Severino que antes sustentava a madame
Passava abaixo assinado para fecharem a casa infame

E foi assim por muitos anos, até que toda gente esqueceu
Do antigo Severino, que tanto trabalho deu
Ele era agora boa gente, apesar de muito chato
Só falava coisa de crente, era uma pedra no sapato

Um dia o Severino, adoeceu-se gravemente
E a cidade logo soube, que o passamento era iminente
Na igreja dele instalou-se oração e comoção
E até madame Cristina lamentou de coração

Severino já na espreita do terrível finalmente
Disse que era chegada hora, mas que partia contente
Ia ver seu salvador em sua hora mais urgente
Diante do qual então, se humilharia alegremente

Mal falou bateu a botas, abotoou o paletó
Foi pra terra dos pés juntos comer capim pela raiz
Mas conta-se a boca miúda que aqui não acaba o trolóló
O Severino após a morte se tornaria aprendiz

II – De como o crente Severino encontrou um Deus legal

Chegou Severino numa sala mais pra lá de bem modesta
Com uma mesinha e duas cadeiras, mas que porcaria é esta?
Se perguntava o falecido enquanto coçava a testa

Sente-se, não se aveche e se ponha confortável
Disse uma voz misteriosa de origem inescrutável
Severino então sentou e um rapaz veio recebê-lo
Oi, eu sou Deus, muito prazer em conhecê-lo

Tomado o susto do momento, o Severino calado
Se jogou de cara no chão, de joelhos prostrado
Deus olhou o cabra encolhido e disse com cara de enfado
Se levante e sente a bunda nesta cadeira ao seu lado

Meu senhor, eu te louvo, disse o Severino tremendo
Deus olhou meio de soslaio e disse: homem tome tento
Se aprume e me assunte, que o rapapé não tá a contento
Deixe de puxassaquismo e vamos ao que é o intento

Meu senhor, teu livro santo, de cabo a rabo já li
Deus já um tanto arretado, responde: não te entendi
Fiz sonetos e sinfonias, mas a Bíblia eu não escrevi
Por sinal nem gosto muito de algumas coisas ditas ali

Severino perturbado, com um Céu que não entende
Clama que o Salvador diga o que dele se pretende
Deus responde com a pergunta: O Dalí ou o Allende?

Diante do diferente de tudo que esperava
O remido jogador tenta a última cartada
Pede a Deus que o livre do inferno e que lhe conceda a graça
De graça nem almoço, disse Deus, sua proposta é negada

Um terror maior então tomou a face do crente,
Implorou para não ser jogado no lago de fogo inclemente
Mas porque eu faria isto, homem, que idéia mais desenxabida
Esta história de inferno é por demais descabida

Sem graça e sem inferno, sem Bíblia e sem Jesus,
Quedou-se triste Severino, como se carregasse uma cruz
Deus deu-lhe dois safanões, choradeira não me seduz
A eternidade é longa, e ela que te conduz
O infinito é grande, e é ele que te traduz
Severino, és um homem, no teu ser há luz

E foi assim que o Severino, um cabra bem diferente
Que foi jogador rufião e tornou-se fiel crente
Converteu-se ele de novo, agora em gente normal
Desistiu das armadilhas que arma a crença boçal
Porque descobriu Severino, que o seu Deus era legal.