quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Roma, a religião da república sagrada

Comentários sobre a série da HBO

Por Acauan Guajajaa

Publicada originalmente em 17/01/2006 às 16:22

A série televisa Roma (EUA, 2005, co-produzida pela HBO e BBC) é um primor de reconstituição histórica, que mostra a vida na capital do Império no tumultuado período desde a conquista da Gália por Caio Julio César em 52 A.C. até seu assassinato em 44 A.C., levado a cabo por uma conspiração de senadores. Neste período, da narrativa principal, que conta como César subjugou o senado e conquistou o poder absoluto, derivam outras secundárias que retratam o cotidiano da aristocracia e da gente comum da Roma de então.

A perspectiva dos comuns é abordada do ponto de vista de dois fictícios personagens, o legionário Tito Pullo (Interpretado por Ray Stevenson) e o centurião Lúcio Voreno (Interpretado por Kevin McKidd), este um guerreiro totalmente dedicado à sua corporação, a décima terceira Legião, com a qual César bateu Vercingétorix (é, aquele do Asterix) e tomou o rumo do Rubicão.

Voreno, na série, é descrito por Marco Antonio como um muro de pedra catoniano, uma referência aos romanos que seguiam o modelo de conduta e vida de Catão, o censor que encarnava o espírito de austeridade, severidade e honra da antiga República.

A religião de Voreno e de Roma era essencialmente uma religião cívica, na qual não havia diferença entre pecado e não cumprimento dos deveres de cidadão, entre confrontar as instituições e sacrilégio ou entre ofender a República e ofender os deuses.

A República Romana, para os cidadãos que guardavam seus antigos valores, era mais do que uma entidade política, era um intermediário entre os deuses e os homens. Uma entidade erigida por estes, mas imortal como aqueles. Este amálgama entre o civil e o sacro na consciência religiosa romana é abordado no conflito íntimo que se instala em Lúcio Voreno quando César convoca suas tropas para marchar a Roma, contra as ordens do senado. Para o centurião o ato de César é um sacrilégio, cujo destino final teme ser a destruição da República e a instalação da tirania. Mas os mesmos valores e princípios que o fazem se opor às decisões de seu comandante o obrigam a obedecê-las.

O paganismo de Estado dos romanos se mostra em Voreno nas suas diversas facetas. Em uma cena cheia de compenetração sensível o catoniano oferece seu sangue a Vênus, pedindo à deusa que sua esposa o ame tanto quanto ele a ama, uma vez que sua dureza de soldado o impede de expressar seus sentimentos diretamente a ela. Em outra, quando indagado sobre o número de homens que matou, o centurião fornece com frieza uma contagem precisa dos guerreiros mortos (os civis ele não contava), cujo número era oferecido como tributo a Marte, deus da guerra. Voreno também protagoniza alguns rituais específicos, como o banquete oferecido a Janus, o deus das portas, para que este favoreça uma iniciativa comercial, e o ritual de fertilidade, no qual ele e a esposa simulam um ato sexual em meio às terras de sua propriedade, visando torna-las fecundas.

Um contraponto interessante à religiosidade cívica rígida e sincera dos catonianos é apresentada na série no episódio 4, Stealing from Saturn, na qual César, para legitimar seu poder, precisa de um sinal de bons auspícios que deixasse claro que os deuses apoiavam sua tomada do poder absoluto. Ele consegue isto subornando os sacerdotes do Collegium Pontificum, que por uma vultosa quantia aceitam providenciar a aprovação divina durante a sagração de César como ditador romano.

É também através de Lucio Voreno que podemos observar o modo sutil, mas muito minucioso, como a série nos apresenta a desconfortável crueldade reinante na ausência dos valores cristãos que só conquistariam o Ocidente alguns séculos depois.

Em uma cena particularmente chocante, o centurião vai tratar a venda dos escravos que recebera como espólio na campanha da Gália, deixados sob a guarda de um mercador que deveria engordá-los visando melhorar seu preço. Quando pergunta pelo estado de suas mercadorias, é conduzido pelo mercador à jaula minúscula onde estão os corpos putrefatos dos prisioneiros, que morreram de disenteria. O único sobrevivente é um pequeno menino, mantido preso junto ao cadáver da mãe e dos demais para que o proprietário pudesse comprovar por si mesmo que seu patrimônio não fora roubado.

O centurião trava um desesperado diálogo com o mercador, no qual lamenta a dimensão de seu prejuízo. Para o espectador estupefato fica a terrível dúvida de o porquê ninguém ligar a mínima para as pessoas mortas, principalmente, para a criança aprisionada junto aos restos apodrecidos de sua mãe e parentes.

Por que Lúcio Voreno, um homem íntegro e abnegado, se mostrava tão impiedoso?

A resposta simples é que a piedade cristã só seria divulgada quase um século depois do tempo daqueles eventos narrados. Para os romanos, os vencidos escravizados eram apenas isto, vencidos escravizados. Suas vidas e mortes tinham o valor exato de seu preço de mercado ou de sua serventia para o trabalho. Na ausência dos preceitos cristãos que viriam a criar o conceito de pessoa humana com valor em si mesma, os romanos avaliavam o quanto valia uma vida pela sua posição na hierarquia de sua sociedade. Não havia como ou porque naquele sistema reconhecer qualquer tipo de igualdade entre um cidadão romano livre e quem não o era.

Apesar de toda identificação da República Romana e seus valores como a manifestação mais visível dos desígnios dos deuses, Roma não era uma teocracia, no sentido que atualmente se dá ao termo. Na teocracia a religião incorpora o Estado enquanto em Roma o Estado incorporava a religião. Esta simbiose construiu e consolidou o civismo dos romanos, base de sua têmpera guerreira que demarcou o Ocidente na ponta do gládio e na batida das cáligas.Quando o poder e a riqueza corromperam esta simbiose, a República Sagrada desabou.
O triunfo do Império continha em si o gérmen de sua própria decadência.

Um comentário:

  1. Eu assisti a série completa. E apesar de ter um conteúdo "forte" acho que algumas situações de hoje em dia poderiam ser tratadas da mesma forma com que eram tratadas naquela época...
    Não agradou? Corta a cabeça!! Simples...
    As mulheres comandavam Roma através de seus conselhos sussurados em meio a muita sexualidade e pseudo "submissão"..
    Achei tudo fantástico...e em muitos aspectos nada diferente do que vivemos hoje. A escravidão continua existindo, as pessoas são medidas pelo que possuem e não pelo seu valor ético e moral...enfim....podemos trocar idéias a respeito....

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