quarta-feira, 15 de abril de 2009

Quadrilogia Tupi II - Elegia em Prosa a um Cacique

Por Acauan Guajajara

Publicado originalmente em 30/7/2004 22:17:14

Quando eu tinha dez anos, visitei as terras ancestrais de meu pai e de meu povo.

Não era a primeira vez. Na anterior eu havia conhecido o gavião que me dera nome e título, mas esta é uma outra história.

Esta começa a beira de um rio caudaloso, de forte correnteza, onde um menino montado num cavalo recebe as instruções de dois membros do clã sobre como atravessá-lo.Alertam-me que a correnteza provoca tonturas e me orientam para que eu fixe o ponto de saída na outra margem e conduza firmemente o animal sempre naquela direção.

Cheio de temor e empolgação iniciei a travessia, exultante ante a idéia de vencer tal desafio sozinho, mesmo acreditando que se caísse do cavalo certamente morreria afogado, dadas a profundidade e a correnteza do rio.

O tempo do percurso deve ter sido de pouco minutos, mas para mim pareceu infinitamente maior, tal era a tensão com que manobrava as rédeas, temendo cometer um erro potencialmente fatal.

Não sei quantos de vocês já passaram por experiência semelhante.O burburinho do rio lhes enche os ouvidos de tal forma que não se consegue ouvir outra coisa, enquanto a correnteza produz a ilusão de que a margem de destino desliza móvel ante seus olhos, como a plataforma da estação passa diante dos que ocupam o vagão de um trem que parte.

Medo e vontade de vencer o desafio se alternavam em mim.

Quando cheguei exultante à outra margem, meus dois acompanhantes se limitaram a me olhar satisfeitos e dizer:

- Seu pai cruzava este rio a nado.

Depois daquele evento, notei que todas as vezes que me apresentavam a alguém, diziam não mais apenas este é Acauan, como sempre fizeram. Passaram a dizer este é Acauan, filho de ..., e diziam o nome de abaetê meu Pai.

Anos depois, passei a lembrar daquele dia com estranheza. Como adultos responsáveis deixaram uma criança correr risco de vida naquela travessia?

Foi preciso mais algum tempo para que eu soubesse o que de fato ocorrera.O cavalo que eu montava era habituado a cruzar o rio naquele ponto e o atravessaria com segurança, quer eu o conduzisse corretamente ou não.Os dois acompanhantes se posicionaram em cada um dos meus lados, atentos a me socorrer ao primeiro pedido de socorro ou a se lançarem a água caso eu caísse.

Eu estava absolutamente seguro.

Sem saber, passara por um ritual de coragem, reservado aos filhos homens dos abaetês caciques.

Muito se havia perdido.
Nossa língua morreu.
Nossa identidade guerreira morreu.
Nossa cultura ancestral morreu.

Ou quase.Algo sobreviveu.

A idéia de que o filho de um grande cacique devia ter sua coragem testada, para se fazer digno de ser quem era.

Naquele dia nasceu ACAUAN DOS TUPIS.

Honra e glória à memória de abaetê meu Pai. Valoroso guerreiro, cacique dos Tupis.

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