sábado, 6 de outubro de 2012

Sobre a cura divina

Publicado originalmente em 6/1/2005 14:22:55
por Acauan Guajajara 

O tema cura divina e o modo como é explorada por diversas instituições religiosas exige uma abordagem cuidadosa. 

Num extremo da questão temos doentes terminais, suas famílias e amigos, para quem a última esperança reside num milagre. Gente a quem não faremos bem algum se tirarmos deles o que lhes restou para se apegarem, esgotadas as possibilidades da medicina.

No outro extremo, vigaristas contumazes se aproveitam da fragilidade destas pessoas para obter proveito pessoal. 

Entre os dois extremos há uma zona cinzenta onde se misturam boas intenções e crenças sinceras de um lado e resultados que podem ir do inócuo ao desastroso do outro, ou ainda, combinações em diferentes graus de Fé verdadeira, desinformação e oportunismo, tudo isto fundido num cadinho perigoso onde a saúde do crente é, muitas vezes, reduzida a um instrumento de marketing para uso do proselitismo religioso.

Um exemplo elucidativo são as inúmeras alegações de cura da AIDS, vindas tanto de católicos carismáticos quanto de evangélicos de diversas vertentes. Não vou tratar aqui de curas reivindicadas por curandeiros avulsos, místicos ou esotéricos vários, já que meu objetivo é observar como instituições oficialmente estabelecidas lidam com este problema.

Nunca houve no mundo todo, um único caso de cura da AIDS comprovado, documentado e divulgado. 

Se houvesse, publicações especializadas como The New England Journal of Medicine, publicado pelo Massachusetts Medical Society, uma das mais respeitadas publicações médicas do mundo, dedicariam infindáveis páginas a esta ocorrência, despertando a atenção de toda a comunidade médica para a divulgada cura, o que tornaria o paciente protagonista desta recuperação o centro das atenções da medicina mundial.

Alguém comprovadamente curado de AIDS seria certamente virado do avesso pelas equipes de pesquisa médica, que levantariam nos mínimos detalhes todos os fatores que poderiam ter sido as causas de tal cura como, medicação, D.N.A., alimentação, modo de vida, fatos incidentais correlacionáveis etc, até que estas causas fossem identificadas e seus mecanismos compreendidos.

Que fique claro que a definição médica para cura da AIDS é a total e completa eliminação do vírus HIV do organismo até então infectado. Como Síndrome de Imuno-Deficiência Adquirida, a AIDS se manifesta na forma de infecções oportunistas, sendo que a cura destas infecções ou mesmo variações nos quadros sintomáticos não significam a cura da doença. 

Não obstante as questões colocadas acima, relatos de cura divina da AIDS obtidas por igrejas são mais comuns que pipoca em cinema, sendo que estes abundantes casos parecem passar completamente despercebidos da comunidade médica internacional, que por desinformação asinina, conspiração ateísta ou ação do diabo, continua acreditando que até hoje ninguém foi curado. 

As alegadas curas de AIDS são um exemplo notório da discrepância gritante entre as alegações de curas e os fatos médicos registrados. 

Mas existem outras muitas situações menos dramáticas, mas igualmente esclarecedoras, como a profusão de aleluias por conta das inúmeras “curas milagrosas” de cistos de ovários, que teriam desaparecido sem deixar vestígios, mostrando o poder de um Deus tremendo para embasbacados médicos ímpios. 

Não consigo imaginar um médico de verdade, ímpio ou crente, ficando embasbacado com o desaparecimento de um cisto, já que, na maioria dos casos, é natural e esperado que eles desapareçam por regressão espontânea, seja a paciente uma serva de Deus, de outro ou de ninguém. 

E temos também as curas de câncer. Quase sempre citadas pelo seu nome genérico, muitas vezes sem entrar em detalhes como se o câncer curado era um melanoma inicial, curável, com tratamento correto, em quase 100% dos casos ou uma metástase cerebral. 

Quanto a este último caso, gostaria muito que alguma igreja comprovasse uma única ocorrência de cura. Sinceramente ficaria feliz se alguém provasse que é possível fazer desaparecer cinco tumores do tamanho de uma laranja do cérebro de alguém (e o paciente continuar vivo, óbvio). 

O resumo da ópera é que há evidências mais que suficientes para se concluir que as alegações de cura divina por igrejas são, no mínimo, exageradas. 

Mesmo assim, várias delas exibem um caudaloso aparato de provas dos milagres e graças obtidos por suas orações, das quais sempre constam atestados médicos, cadeiras de rodas abandonadas ou radiografias de antes e depois. O engraçado é que a opinião circulante nestes meios, trombeteada ou à boca miúda, é que só os “nossos” atestados médicos, cadeiras de rodas ou radiografias são provas incontestes da ação divina. Os atestados médicos, cadeiras de rodas e radiografias da igreja concorrente são sempre falsificações grosseiras destinadas a enganar os ignorantes. 

É isto ou existe algum evangélico que acredita que Nossa Senhora Aparecida curou alguém? Se relíquias dos supostos curados valem, aquela basílica enorme perto da Via Dutra está abarrotada delas. 

E os atestados médicos? Alguém aqui sabe o que é Xantogranuloma juvenil? 

Pois é, também não sei, mas sei que esta doença, seja lá o que for, “freqüentemente regride espontaneamente”, segundo quem entende. Sem conhecimento especialista para avaliar atestados médicos que digam que alguém se curou de Xantogranuloma ou de qualquer outra coisa, eles nada provam. E é óbvio que qualquer médico que se dispor a levantar a veracidade destes milagres será imediatamente taxado de escarnecedor ateu ou algo que o valha antes de ter chance de fazer a primeira pergunta. Por que algum médico sério pagaria este mico? 

É nesta hora (talvez antes) que alguém diz – E o que você tem com isto? Se não acredita que estas pessoas são curadas o problema é seu, deixe-as em paz. 

Não acredito e nem deixo de acreditar. Mesmo porque não é o que se acredita que está em jogo aqui, mas a saúde de pessoas que podem deixar de procurar tratamento médico adequado por crerem que foram ou serão curadas por Deus com a ajuda de seus representantes, ou servos, ou seja lá como chamam a si mesmos. 

Igrejas tradicionais e clérigos esclarecidos costumam orientar seus fiéis a não trocar o tratamento médico pela espera de um milagre. Mas igrejas tradicionais são minoria. Clérigos esclarecidos, verifiquem. Quem duvidar que conte o número de esquinas em que se acha uma porta de igreja anunciando curas milagrosas no varejo, inclusive com dias e horários especiais para isto. São estas promessas de curas que atraem e mantém parte do rebanho destas igrejas e embora não seja possível precisar quantos, sempre haverá um responsáveis por elas que verão no hospital e no médico concorrentes a serem afastados. 

Quem, como eu, já ouviu a frase “doença é uma vergonha no povo de Deus, eu não vou em médico” (sic), sabe do que estou falando.

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